Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 5 de maio de 2012

Alexei Bueno: testamento poético

Quem versos com eu fiz
Fez, pode sossegado
Dormir, sentindo o intenso
Prazer de se ser vivo.

Quem tal como eu cantou
O que não passa no homem,
Medo não tem que o tempo,
Passando, o não mais passe.

Pois quando o divino ar
Não mais, como foi sempre,
Entrar pelo meu peito,
Aos homens falarei

Ainda, qual o espectro
Dos mortos, e assim ouso
Calmo dormir, enquanto
Minhas palavras velam.

BUENO, Alexei. Poemas gregos. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.175-176.

perseverança tranquila

1953, Janeiro, 18 ― Paciência! Paciência! O sininho interior badalando esta ordem. Eu sei que sua observância exige mais coragem do que a da revolta, ou a simples impaciência. E sabendo isso, cultivo a ilusão de que se torna mais fácil ser paciente: dou a mim mesmo um diploma de virtude latente. Mas será válido esse diploma? Gostaria tanto de exercê-lo na acepção do Pequeno Dicionário: “perseverança tranquila”. Pois sim.

Carlos DRUMMOND de Andrade. O observador no escritório. Rio de Janeiro: Record, 1985, p.103.

sempre é tempo

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Riobaldo, acerca da revelação de Diadorim sobre sua identidade

"Era um nome, ver o que. Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe."

relendo grande sertão: veredas (XIX)

“Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas horas estreitas ― isso procuro. (...) Homem como eu, tristeza perto de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero.
Desespero quieto à vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim o gole de um pensamento ― estralo de ouro: pedrinha de ouro. E conheci o que é socorro.
Com o senhor me ouvindo, eu deponho. Conto. Mas primeiro tenho que relatar um importante ensino que recebi do compadre meu Quelemém. E o senhor depois verá que naquela minha noite eu estava adivinhando coisas, grandes ideias.
Compadre meu Quelemém, muitos anos depois, me ensinou que todo desejo a gente realizar alcança ― se tiver ânimo para cumprir, sete dias seguidos, a energia e paciência forte de só fazer o que dá desgosto, nojo, gastura e cansaço, e de rejeitar toda qualidade de prazer. Diz ele; eu creio. Mas ensinou que, maior e melhor, ainda, é, no fim, se rejeitar até mesmo aquele desejo principal que serviu para animar a gente na penitência de glória. E dar tudo a Deus, que de repente vem, com novas coisas mais altas, e paga e repaga, os juros dele não obedecem medida nenhuma. Isso é do compadre meu Quelemém. Espécie de reza?
Bem, rezar, aquela noite, eu não conseguia. Nisso nem pensei. Até para a gentes e lembrar de Deus, carece de se ter algum costume. Mas foi aquele grão de ideia que me acuculou, me argumentou todo. Ideiazinha. Só um começo. Aos pouquinhos, é que a gente abre os olhos; achei, de per mim. E foi: que, no dia que amanhecia, eu não ia pitar, por forte que fosse o vício de minha vontade. E não ia dormir, nem descansar sentado nem deitado. E não ia caçar a companhia do Reinaldo, nem conversa, o que de tudo mais prezava. Resolvi aquilo, e me alegrei. O medo se largava de meus peitos, de minhas pernas. O medo já amolecia as unhas. (...) O que resolvi, cumpri. Fiz.
Ah, aquele dia me carregou, abreviei o poder de outras aragens. Cabeça alta ― digo. Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.169-170.

necessidade

Necessidade imensa de escrever, mas alguma coisa me detém, para além do cansaço.

uma banda antiga

relendo grande sertão: veredas (XVIII): o livro que não cabe no livro

“Desculpe me dê o senhor, sei que estou falando demais, dos lados. Resvalo. Assim é que a velhice faz. Também, o que é que vale e o que é que não vale? Tudo. Mire veja: sabe por que é que não purgo remorso? Acho que o que não deixa é a minha boa memória. A luzinha dos santos-arrependidos se acende é no escuro. Mas, eu, lembro de tudo. Teve grandes ocasiões em que eu não podia proceder mal, ainda que quisesse. Por quê? Deus vem, guia a gente por uma légua, depois larga. Então, tudo resta pior do que era antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém não pode medir suas perdas e colheitas. Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me entender, me espere.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.160-161.

mestres da desordem: não seria má ideia um deles no rio de janeiro

exposição les maîtres du désordre (aqui)

terça-feira, 1 de maio de 2012

João Cabral de Melo Neto: "viver é ir entre o que vive"

(Discurso do Capibaribe)

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas
 geleias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu
 voo).

MELO NETO, João Cabral de. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.83-86. 

sabedoria de criança

Um aluno escreve: “Acho que os traumas acontecem quando somos pequenos e indefesos, quando tudo tem uma dimensão desproporcional. E nessa idade certas coisas calam-se tão fundo  que se tornam quase irreversíveis. Estou consciente de que não há alegria que sempre dure ou mal que nunca acabe. Acredito que, após ter passado por algumas tempestades, alcancei um sossego.”

karnak: juvenar (música incidental: admirável gado novo)

acerca das comemorações (oficiais) pelo dia do trabalho

O dia é do trabalhador, não do empregador. Deixem-no descansar, pelo menos hoje: “Comemorando este dia/ vamos todos descansar!” (Jorge de Lima, “Mês de maio”)

relendo grande sertão: veredas (XVIII)

“Comigo, as coisas não têm hoje e ant’ôntem amanhã: é sempre. Tormentos. Sei que tenho culpas em aberto. Mas quando foi que minha culpa começou? O senhor por ora mal me entenderá, se é que no fim me entenderá. Mas a vida não é entendível.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 156.

primeiro de maio: trabalho e labor

O labor preserva metafórica e concretamente a natureza para dela receber uma lição de progresso e de vida. Graças à metáfora tomada de empréstimo pela literatura erudita de Clarice ao mundo vegetal e ao cotidiano campesino, o labor abraça homem e natureza, campo e cidade, abraça-os e os entrelaça num mesmo horizonte de expectativas, fecundo e amoroso, feliz. ‘Tudo é passível de aperfeiçoamento’, não é outra a lição do conto ‘Amor’. O labor não se manifesta pela força humana alienada única e exclusivamente em experiência do trabalho, em produtividade, repetimos com a ajuda de Marcuse. Ele é manifestação de proximidade e distância do objeto de cuidado, de um misto de vigilância e afeto, de diligência e abandono, de inquietação e paz. É dom. Tem algo da economia na sua acepção etimológica: oikos, casa, e nomos, governo, o governo da casa, o governo do mundo. Tem algo a ver, nos relatos das viagens renascentistas da descoberta de novos mundos, com o trabalho anônimo da tripulação marinheira nessa casa flutuante que é o navio. Eles cuidam do navio que abre as portas do mar. Na utopia comunista de Marx, se lê que trabalho agrícola e trabalho industrial, trabalho rural e urbano serão um dia sabiamente combinados, ali se lê, ainda, que ‘na sociedade comunista o trabalho não será mais do que um meio para alargar, enriquecer e embelezar a existência dos trabalhadores [grifo nosso]’. Não é outro o sentido do labor em Clarice, só que ― grande diferença! ― já passível de ser concretizado no cotidiano nosso. 
Por duas vezes encontramos a palavra progresso no conto ‘Mistério em São Cristóvão’ e as duas vezes sintomaticamente atada ao mês de maio. A primeira vez, logo no início do conto, para dizer que o progresso tinha chegado àquela família depois de muitos anos, pois tudo e todos crescem de maneira harmoniosa e verdadeira. Leiamos um curto trecho: ‘depois de muitos anos quase se apalpava afinal o progresso [grifo nosso] nessa família: pois numa noite de maio, após o jantar, eis que as crianças têm ido diariamente à escola, o pai mantém os negócios...’ Continua o conto, descrevendo os efeitos do labor, incluindo entre as atividades do labor ‘os negócios do pai’: ‘Sem se dar conta, a família fitava a sala feliz, vigiando o raro instante de maio e sua abundância.’ A segunda vez, ao final do conto, depois do microrrelato do acontecimento dramatizado. Os três cavalheiros mascarados olhando pela janela da casa e sendo olhados de dentro do quarto pelo rosto branco da mocinha. Esse instante é o momento em que o progresso se desfaz. Leiamos este outro trecho do conto: ‘E como o progresso [grifo  nosso] naquela família era frágil produto de muitos cuidados e de algumas mentiras, tudo se desfez e teve de se refazer quase do princípio...’ Numa outra noite de maio, termina o conto, talvez de novo se pudesse apalpar o progresso. 
Uma vez mais é preciso tomar cuidado na compreensão de vocábulos carregados tradicionalmente de significado estanque. O conceito de progresso em Clarice (como o de acontecimento, beatitude, trabalho etc.) não carece de apoio por parte da compreensão linear e ascensional do tempo, não pode ser apalpado por metros lineares, quadrados e cúbicos; pode e deve ser compreendido pelo movimento cíclico das estações do ano; pertence mais ao calendário agrário do que ao calendário cristão. O instante-já, que recobre um determinado e específico momento biográfico, sendo por isso uma estrutura de courte durée, ao ser referendado pelo calendário agrário, assume a estrutura de longue durée. As metáforas tomadas de empréstimo ao mundo vegetal e ao cotidiano campesino, de novo, servem para ratificar a dupla temporalidade própria do progresso qualitativo. 
Maio é o mês por excelência do progresso, diz-nos o conto. A perigosa passagem de uma fase da vida em família para outra fase é tematizada pela passagem da velha para a nova estação do ano. Temos aí resquícios de uma cultura oral pagã numa das mais instigantes obras literárias escritas a partir dos anos 40. Num instante preciso, mocinha e tempo atravessam uma crise sazonal. Maio é o mês da crise e da revelação, da evolução. Nesse mês é que se dá o rito de fertilidade da mocinha. Mocinha e tempo vivem ambos com a promessa de nova semeadura, colheita, messes e vindima. Diante da promessa latente nas coisas, da propensão de um canteiro de gerânios, os cavalheiros mascarados, qual feiticeiros, interrompem a caminhada noturna e festiva para o baile, para o sabá. Interrompem ao mesmo tempo o fio da vida da personagem, pondo em xeque o progresso naquela família. Ou seriam os cavalheiros espíritos que saem do corpo da menina no momento em que dorme profundamente? Pouco importa, se espíritos ou se cavalheiros mascarados, o que importa é que nunca se divertiram com tanta felicidade. A haste de um gerânio é encontrada partida pela avó. Um fio de cabelo branco aparece na fronte da mocinha. 
Como não lembrar o poema ‘Mês de Maio’, de Jorge de Lima. Esse ‘mesinho brasileiro’, como carinhosamente o poeta o apelida, teve o seu dia primeiro escolhido para ser Dia do Trabalho. Desde que se defina o conceito de trabalho pelos ensinamentos da aula inaugural de Clarice Lispector. 

Silviano Santiago. A aula inaugural de Clarice. Wander Melo Miranda (Org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p.27-29.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

a palavra-escrita

Escrever é um ato solitário, impermutável, intransferível. Escreve-se com o corpo, com as mãos, dobrando cada palavra ao gesto de querer simplesmente marcar, sulcar um veio no terreno de que a trama dos sentidos emana. Retomo o comentário da Helena a propósito do poema de Ana Hatherly: Pois é isso mesmo que a palavra é: um gesto arcaico!“A palavra-escrita/ é um labor arcaico:/ sulca enigmas/ venda e desvenda/ o sentido do gesto” ― A palavra-escrita torna-se um novo substantivo: não é apenas a palavra escrita, é a palavra tornada escrita, quase obrigada a sulcar enigmas, traçar linhas numa folha como o tempo traça rugas na face. É a escrita que arranca a palavra de seu estado de dicionário para obrigá-la a ser o que afinal justifica sua existência, da palavra-escrita: gesto que liberta a garganta das constrições do tempo, que impõe bem mais que rugas à face. 

medo das palavras

Descubro, não sem espanto, que tenho alguns medos, mas nunca tinha me ocorrido pensar no medo (que tenho) das palavras...

john cage: “music is edifying, for from time to time it sets the soul in operation”

relendo grande sertão: veredas (XVII): "o real roda e põe adiante"

“O Menino me deu a mão: e o que mão a mão diz é o curto; às vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo; isto também. (...) Para que refletir tudo no narrar, por menos e menor? Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que se lê. Mesmo o que estou contando, depois é que pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido ― porque, enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põe adiante. ― ‘Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos’ ― me explicou o compadre meu Quelemém. Que fosse como sendo o trivial do viver feito uma água, dentro dela se esteja, e que tudo ajuda e amortece ― só rara vez se consegue subir com a cabeça fora dela, feito um milagre: peixinho pediu.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 154-155.

domingo, 29 de abril de 2012

Manuel Bandeira, sempre uma descoberta

O MARTELO

As rodas rangem na curva dos trilhos
Inexoravelmente.
Mas eu salvei do meu naufrágio
Os elementos mais cotidianos.
O meu quarto resume o passado em todas as casas que habitei.
Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como um arrulho de pomba.
Sei que amanhã quando acordar
Ouvirei o martelo do ferreiro
Bater corajoso o seu cântico de certezas. 

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.168.

dansa ligeira

“E aí o povo encheu a rua, à distância, para ver. Porque não havia mais balas, e seu Joãozinho Bem-Bem mais o Homem do Jumento tinham rodado cá para fora da casa, só em sangue e em molambos de roupas pendentes. E êles negaceavam e pulavam, numa dansa ligeira, de sorriso na bôca e faca na mão.”

Rosa, João Guimarães. A hora e vez de Augusto Matraga. Sagarana. 6.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964, p.362-363.

Uma coisa são os acordos ortográficos, com as modificações na norma de grafia das palavras; outra é a criação lexical de um autor como Guimarães Rosa, infelizmente desrespeitada nas sucessivas edições de sua obra. A edição da Nova Fronteira é bem irregular. Na edição de 2001 de Sagarana lê-se assim o trecho citado:

“E aí o povo encheu a rua, à distância, para ver. Porque não havia mais balas, e seu Joãozinho Bem-Bem mais o Homem do Jumento tinham rodado cá para fora da casa, só em sangue e em molambos de roupas pendentes. E eles negaceavam e pulavam, numa dança ligeira, de sorriso na boca e faca na mão.” (p.410)

O que é lamentável, pois em Guimarães Rosa as palavras querem dansar, na frase e no universo do leitor, insinuar, no ‘s’, o movimento que elas vivificam...

relendo grande sertão: veredas (XVII)

“Mas lá não cheguei. Em certo ponto do caminho, eu resolvi melhor minha vida. Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, me governou um desgosto. Não sei se era porque eu reprovava aquilo: de se ir, com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na constante brutalidade. Debelei que descuidassem de mim, restei escondido retardado. Vim-me. Isso que, pelo ajustado, eu não carecia de fazer assim. Podia chegar perto de Zé Bebelo, desdizer (...). Não podia? Mas, na hora mesma em que eu a decisão tomei, logo me deu um enfaro de Zé Bebelo, em trosgas, a conversação. Nem eu não estava para ter confiança nenhuma em ninguém. A bem: me fugi, e mais não pensei exato. Só isso. O senhor sabe, se desprocede: a ação escorregada e aflita, mas sem substância narrável.”  

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 151-152.

relendo grande sertão: veredas (XVI)

“Zé Bebelo, olhando, me olhou, notou moleza. ― ‘Tem dó não. São os danados de façanhosos...’ Ah, era. Disso eu sabia. Mas como ia não ter pena? O que demasia na gente é força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 150.