Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 7 de janeiro de 2012

história

Contemos uma história. Mas que história?
A história mal-dormida de uma viagem.

LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. São Paulo: Ediouro, s/d, p.16.

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

[Canto Primeiro, Fundação da Ilha, VI]

A proa é que é,
é que é timão
furando em cheio,
furando em vão.

A proa é que é ave,
peixe de velas,
velas e penas,
tudo o que é a nave.

A proa é em si,
em si andada.
Ave poesia,
ela e mais nada.

Soa que soa
fendendo a vaga,
peixe que voa,
ave, voo, som.

Proa sem quilha,
ave em si e proa,
peixe sonoro
que em si reboa.

Peixe veleiro,
que tudo o deixe
ser só o que é:
anterior peixe.

LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. São Paulo: Ediouro, s/d, p.17.

sentimentos confusos

Ao reler o conto “Nenhum, nenhuma”, de Guimarães Rosa, de verve platônica, é inevitável o impacto da cena final:
"E eu precisei de fazer alguma coisa, de mim, chorei e gritei, a eles dois: ― 'Vocês não sabem de nada, de nada, ouviram?! Vocês já se esqueceram de tudo o que, algum dia, sabiam!...'
E eles abaixaram as cabeças, figuro que estremeceram.
Porque eu desconheci meus Pais ― eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?"

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.54.

Álvaro de Campos

DILUENTE

A vizinha do número catorze ria hoje da porta
De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.
Ria naturalmente com a alma na cara.
Está certo: é a vida.
A dor não dura porque a dor não dura.
Está certo.
Repito: está certo.
Mas o meu coração não está certo.
O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo da vida.

Cá está a lição, ó alma da gente!
Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu,
Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?
Estou só no mundo, como um pião a cair.
Posso morrer como o orvalho seca.
Por uma arte natural de natureza solar,
Posso morrer à vontade da deslembrança,
Posso morrer como ninguém...
Mas isto dói,
Isto é indecente para quem tem coração...
Isto...
Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche com lágrimas...
Glória? Amor? O anseio da alma humana?
Apoteose às avessas...
Deem-me Água de Vidago, que eu quero esquecer a Vida!

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.345.

parasite (animação)

sonhei com parasitas esta noite... aqui uma caixa de pandora às avessas

a chuva apenas chuvava, não alagava, inundava, destruía...

Assim corria a vida. Mansa, mansa.
Os homens homenzavam, as mulheres mulherizavam, os meninos e meninas meninizavam, os ventos ventavam, a chuva chuvava, as galinhas galinhavam, os galos galavam, a figueira figueirava, os ovos ovavam. E assim por diante.

LISPECTOR, Clarice . O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2010, p. 55.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

infância de menina

frescor:
dádiva
em flor
da vida.

metamorfose

"Uma manhã acordo transformada. Já aconteceu antes." Quis dizer uma coisa. Já na rua, ao refletir sobre o que tinha efetivamente escrito, entendi que a letra podia estar dizendo o oposto do que pretendi.

noite

Continuo sonhando, incessantemente, noite após noite, coisas boas e desagradáveis, nós de entendimento em meio à areia movediça de signos dispersos. Mas não afundo ou derrapo ― há a cama, há o chão em que vida se firma, o colchão no chão para fugir à rotina. Uma manhã acordo transformada. Já aconteceu antes. 

zumbi (jorge ben jor): caetano veloso

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Dora Ferreira da Silva

POETAS E INSETOS

Gravamos nas folhas (como insetos)
signos arbitrários
futuros dicionários
para aprendizes de símbolos.

O céu é transparente como
as lentes dos óculos
e a terra se adorna
como as belas mulheres.

Subimos a escada platônica
descemos a escada plutônica
escrevendo entre dois amores
a modo de insetos nas folhas
para gerar sem fim
outras flores
outras fomes.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.137.

Dora Ferreira da Silva

MURMÚRIOS

Pousa num ramo um sopro de agonia
dos que morrem (sem saber)
em nosso coração.

Suspira a noite no vento vadio.
Amados mortos: tentais dizer
o quanto amais ainda?

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.140.

a escrita no espelho

A censura faz parte da escrita. Na sessão de hoje, ao comentar certa angústia, a analista sugeriu que eu escrevesse sobre. Diante de minha interrogação ― o fato de eu tomar a escrita como algo público ―, ela esclareceu que estava apenas sugerindo que eu escrevesse. O que já estou fazendo. Escrever como um processo terapêutico. Naturalmente ela tem em mira o fato de a escrita poder ajudar no processo da fala durante a sessão. Mesmo assim, quantas interdições! O que é uma questão minha, antes de tudo. Diante da tirinha a seguir, disse numa aula que espelhos não falavam: quem fala através deles somos nós, e o outro que nos habita. A escrita torna-se uma modalidade de espelho do que se é, ou do que alguém supõe ser, passando a traduzir coisas que supomos interditadas. Li no blog da Helena um comentário de matéria publicada no jornal El País, e não pude deixar de concordar: “No entanto, não será um espelho aquilo que reflete a nossa imagem mais verdadeira, dado que, frente a ele, sempre a compomos. Nem quem pensa conhecer-nos a reflete. Nem quem nos ama. E muito menos quem nos odeia... Parece que, para verdadeiramente sermos decifrad@s, necessário será sermos olhad@s por quem não nos conhece de todo e, cumulativamente, não tenha razões para nos olhar com 'pré-conceitos'. Por isso, uma amiga de Ray Loriga, Sophie Calle, por ele referida no seu artigo, contratou um detetive para a seguir durante uns tempos e, com o material por ele reunido, montou uma exposição sob o nome 'Detective', na qual aprendeu com todo o rigor e provas documentais, aquilo que displicentemente dizemos, mas em que nunca verdadeiramente acreditamos: nós nunca somos quem julgamos ser!”

Mário de Sá-Carneiro: eu não sou eu nem sou o outro

Genesis (animação)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

admirar

Admiração não se confunde com amor e amizade ― pelo contrário, pode ofuscá-los. Há qualquer coisa de exterioridade na admiração: ad-mirar, olhar que se aproxima, que se quer próximo, mas que para na pura exterioridade do gesto, na opacidade (epiderme não transparente) daquele que resiste à admiração. As palavras, na admiração, são excessivas e nunca bastantes. Simplesmente porque na admiração busca-se no outro a confirmação do próprio narcisismo. Gostar tem outra qualidade, e inclusive pode economizar palavras. A propósito, Fernando Pessoa distinguiu bem as duas coisas.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

casinha na Gamboa

Hoje, passando pela Gamboa, não pude deixar de me lembrar da célebre menção ao bairro. A geografia é inseparável da literatura. Nos dias de hoje, onde Machado de Assis abrigaria da vigilância pública o casal de amantes? Ainda seria necessário fazê-lo?

estrada antiga

Há uma estrada antiga que resquícios esquecidos do eu reconhecem. A estrada confunde-se com esse lado adormecido do eu ― desperto em sonho ―, dá-lhe contorno. Uma estrada antiga, da infância, nunca esquecida. Coisas, recentes, sem nexo aparente, confluindo para a estrada, num lampejo reconhecida, ainda que envolta em camadas de sonho. As coisas desconexas? Um corte indesejado de cabelo, lembrando outros cortes, tesouradas dadas por força de se proteger. Mais o quê? Estranha vizinhança, e a estrada antiga onde o eu, portando a tesoura, reconhece um corte com a infância. “Que culpa temos nós dessa planta da infância, / de sua sedução, de seu viço e constância?” (Jorge de Lima, Invenção de Orfeu).

Madame Tutli Putli (animação)

mantis flight

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

domingo, 1 de janeiro de 2012

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

[Canto III, Poemas Relativos, XXVII]

Contemplar o jardim além do odor
e a mulher silenciosa entre os semblantes,
e refazê-los todos, todos antes
que o tempo condenado os atraiçoe.

Porque eu quero, em memória, refazê-los:
flor longínqua, mulher não pertencida,
substância inexistente, móvel vida,
intercessão de nadas e cabelos.

E meus olhos ausentes me espiando
entre as coisas caducas e fugaces
a minha intercessão em outras faces.

Orfeu, para conhecer teu espetáculo,
em que queres senhor, que eu me transforme,
ou me forme de novo, em que outro oráculo?

LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. São Paulo: Ediouro, s/d, p.81.

viver

Viver podia ser uma coisa mais realista ― uma sensação que me veio depois de ler os contos de Clarice Lispector escritos para crianças ― A vida íntima de Laura, A mulher que matou os peixes, Quase de verdade, O mistério do coelho pensante. “Você sabe que Deus gosta de galinha? E sabe como é que eu sei que Ele gosta? É o seguinte: se Ele não gostasse de galinha, Ele simplesmente não fazia galinha no mundo. Deus gosta de você também senão ele não fazia você. Mas por que fez ratos? Não sei.” (Clarice Lispector. O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2010, p.14)

pergunta sem resposta

A minha queridíssima sobrinha Beatriz, que completará cinco anos no próximo domingo, faz-me pergunta para a qual não consigo imaginar resposta: Por que papai do céu fez o ladrão? Na falta de uma resposta, e já numa outra volta da conversa, é-lhe lembrado o que ela havia dito antes: que ela vai ser tudo (quando crescer). Vou ser tudo, menos ladrão ― responde ela. Tudo, para uma criança de cinco anos, é o reino das possibilidades, o sonho abarcando a vida.

PAZ

Peace is a fiction of our Faith -

A Paz é uma ficção da Fé -


DICKINSON, Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2011, p.44-45.

contra/dicção

É que há algo maior em ação, o que traduziria por sensação de marionete. Se a mitologia concedeu à esperança um lugar único, é porque desde cedo o homem reconheceu o quanto dependia desse sentimento para seguir em frente. Onde está a contradição? Na sensação de impotência diante da força da esperança. Há dois dias, ao rever um poema de Emily Dickinson, pensava no extraordinário poder da palavra proferida, a tal ponto que, sem perceber, o tempo todo se está interferindo no desconcerto do mundo. Guimarães Rosa, mirando Camões, falou no concertar consertado: “Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo.” Se tivesse sido dito consertar concertado, mudaria muito? Concertar, consertar... uma partitura também se desarranja, e não é novo o símile entre música e vida ― às vezes mais ruído que sinfonia (ou sintonia). Mas então os ruídos precisariam ser incorporados à partitura.

Dora Ferreira da Silva: flor refletida no olhar

AGORA, AS COISAS SIMPLES...

Agora, as coisas simples
antes cegas em nossos olhos.
E nada tocamos
mãos sobre as cordas mudas.
Se o som desperta é dele
o ouvido em flor. Mas corre o sangue
porque tudo é vivo sob as folhas mortas.
Sozinho se arma o acorde no piano
há surpresas na colheita deste ano, novos grãos na seara.
Sobre o braço em ângulo a fronte repousa
e o olhar reflete
uma flor.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.352.