Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 19 de novembro de 2011

Bricks

provérbio

Nenhum ouro vale o desdém ou a indiferença. Quem desdenha não quer comprar ― quer esquecer, daria seu ouro em troca do esquecimento. Um dia, em súbito paradoxo, dá-se conta do esquecimento, de que o tempo agiu, e que o nada é um ótimo patamar para aferir a importância das coisas. 

e. e. cummings

da mentira do não
a verdade do sim
(só ela mesma e quem
é ilimitadamente)

para que um tolo entenda
(como triste eu)que nem
mil meandros da mente
valem uma violeta


out of the lie of no
rises a truth of yes
(only herself and who
illimitably is)

making fools understand
(like wintry me)that not
all matterings of mind
equal one violet

e. e. cummings. Poem(a)s. 2.ed. Trad. Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.

leitmotif (animação)

acender um fogo

“Então foi afundando num sono, que lhe pareceu ser o mais confortável e satisfatório que já conhecera na vida. O cão encarava-o, numa imobilidade de espera. O dia curto aproximava-se do fim, num longo, vagaroso crepúsculo. Não havia sinais de um fogo em preparo ― além disso, em sua experiência de cão nunca ele vira um homem jazer assim na neve e não fazer um fogo. À medida que o crepúsculo avançava, a ânsia do calor dominou-o ― ergueu alto no ar uma depois a outra pata dianteira e uivou brandamente; em seguida baixou as orelhas em antecipação aos ralhos do homem. Porém o homem permaneceu silencioso. Mais tarde o cão uivou alto; mais tarde ainda chegou-se de rastos até junto do homem e sentiu o cheiro da morte ― que o fez eriçar o pelo e recuar. Atardou-se ainda algum tempo, uivando sob as estrelas, que saltavam e dançavam e rebrilhavam no céu frio. Depois se voltou e trotou pela trilha afora em direção ao acampamento que conhecia, onde havia outros provedores de alimento ― e provedores de fogo.”

JACK London. Acender um fogo. Contos norte-americanos. Organização Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p.256. Tradução deste conto: Ruth Leão. 

escrita

Necessidade imensa de escrever, mas não estou conseguindo. Quem sabe alguma forma de bloqueio ― ou vazio. O que há no nada, no silêncio, no vazio senão a ausência diria absoluta do oposto que por contraste nomeiam? O silêncio é uma terra encantada, um éden primordial anterior ao primeiro diálogo entre Deus e o homem, Deus contemplando sua criação. 

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

companhia

Havia um exame a fazer, em centro médico localizado num grande shopping da cidade, com uma reserva de tempo. Primeiro passei na Fnac, mas estava muito cheia; dirigi-me então para a Travessa, onde, quando esses parênteses de tempo acontecem, pego dois ou três livros e procuro um sofá para ler um pouco. Os sofás confortáveis estavam todos ocupados, mas logo um desocupou. A ascensão do romance, de Ian Watt, não despertou meu interesse, pelo menos naquele contexto: não queria teoria. Fui percorrendo as páginas dos sonhos de Kafka (mas a tradução não era assinada pelo Modesto Carone), e fiquei abismada com a franqueza com que ele os expunha, alguns bastante bizarros, para as suas namoradas. Acima de tudo, com seu envolvimento com o mundo onírico. Deixei os pesadelos kafkianos de lado e comecei a ler O duplo, de Dostoievski, mas a confusão mental do protagonista crescia numa proporção geométrica com o avançar das páginas, juntando-se à minha, e mesmo já estava na hora do exame. Quando vou a livrarias e bibliotecas sinto um apaziguamento incomum. Deve ser a companhia.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Uma rosa para Emily (William Faulkner)


O conto “Uma rosa para Emily”, de William Faulkner, integra a coletânea em tela. Uma obra-prima. De minha parte, pensei em conhecida Emily, em secretas homenagens. Por que não? "O poço e o pêndulo", de Edgar Allan Poe, também comparece, e encontrei no volume um conto simplesmente único, magistral, "O ousado rapaz do trapézio suspenso", de William Saroyan, título que alude a conhecida canção popular norte-americana. A tradução de João Cabral de Melo Neto é quase musical: "Saiu a caminhar na manhã, tão desperto quanto podia, dando batidas secas com os calcanhares, recebendo com os olhos a verdade superficial das ruas e das estruturas, a verdade banal da realidade. Sem que o procurasse, viu-se a cantarolar: 'Com a maior facilidade voa no espaço imenso, o ousado rapaz do trapézio suspenso', e depois riu com toda a capacidade do ser. Estava, na verdade, uma esplêndida manhã; nublada, fria e triste, uma manhã para a vida interior; ah, Edgar Guest, murmurou, que fome de tua música.' Esplêndida é a poesia desta tradução, é intuir que há uma verdade banal da realidade.

dia mundial da filosofia

trapos da memória

A última notícia que recebo é que os proprietários não vão mais vender o imóvel ― antes havia chegado aos meus ouvidos que iriam vendê-lo no prazo de dois anos ―, de forma que, salvo um aumento exorbitante do aluguel, poderei ficar aqui por prazo indeterminado, ou pelo menos até que nova configuração se desenhe. Ao assistir o curta de animação que acabei de postar, vieram-me de súbito as imagens desta noite, mais precisamente a presença do inusitado animal me fazendo lembrar das baratas ― tenho-lhes verdadeiro horror, são o único animal que de fato detesto. E então é assim: estou indo, acompanhada de algumas pessoas da minha família, dentre elas meu pai, olhar o novo imóvel em que vou morar, e que é esta casa, sendo ela e outra ao mesmo tempo, pois está tudo diferente, diria mesmo o oposto. A casa é voltada para dentro e para baixo, com janelas precárias para a rua, e está caótica, cheia de móveis e coisas estragadas e abandonadas, que não me servirão. Não há portaria, o que me faz pensar nas dificuldades com o correio, os livros e o mais que compro pela internet. Há mato nas imediações, bem próximo, e penso então na possibilidade de ter de conviver com baratas. Foi este o gancho entre o curta e o sonho: lá o animal alimentando a fantasia, aqui o medo e a reticência. Meu pai está aparentemente no comando da situação, e apesar de todos os poréns, minha inclinação é pela aceitação da casa, encontrando, por exemplo, o quarto em que vou dormir. Tudo é desordem, móveis velhos caindo aos pedaços em estado de abandono, e eu aceitando esse estado de coisas. Talvez haja muitas casas nesta casa limpa e organizada em que estou vivendo, a maior de todas a casa de minha infância, onde convivi com baratas e atualmente vive meu pai. Isso explica os panos velhos da memória.

Bave Circus (animação)

a infância e o reino da fantasia. também no youtube.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

people are strange: the doors

a paz da palavra no papel

Um blog precisa atender antes de tudo a quem nele escreve, e não deixa de ser verdade que ando me contendo, o que me faz indagar acerca das motivações de se manter um blog e todo o trabalho que isso encerra. Ocorre que meus sonhos me são muito valiosos, pistas que sigo atrás dos sentidos de (meu) existir. Quando no antigo 2º Grau (hoje Ensino Médio) declinei de seguir a área de exatas, por razões de pouca afinidade, não podia imaginar que, passados cerca de 20 anos, sonharia estar fazendo uma prova de física, impossível de tão difícil, em que tiraria zero. Pois foi isso que se passou na última noite, na arena dos sonhos. Falando com a área de exatas, é claro que não se trata de nenhuma hesitação vocacional, mesmo porque é difícil acreditar em coisas como “vocação” e sua aura religiosa. Minha atual formação coloca-me na área de letras, em interface com as ditas ciências humanas, e não poderia querer melhor. Então, se num sonho em que comparecem pessoas conhecidas vejo-me de modo cruel tentando fazer uma prova de física para além de minha capacidade, num hermetismo a toda prova e sem qualquer motivação aparente para eu estar ali sentada fazendo aquela prova imensa e justamente de física (até porque muito tempo se passou), quando caio num pranto sem consolo e aparecem monitores tentando amenizar a situação, isso só pode ser uma tradução de demandas atuais. Eu reconheço a pessoa que está no papel de professor da disciplina, sei quem é, e as coisas dobram-se em nova densidade. Estar fazendo uma prova, ou exame, também traz inquietações novas, mesmo porque a nota zero é sinal de uma reprovação absoluta, o que leva para a intransigência. Há um compromisso envolvendo a pessoa que está no papel de professor do qual tento me esquivar (e chega a ser irônico pensar que hoje me tornei professora) seguindo uma outra pessoa também conhecida, e entendo o que está em jogo, o que seria esse ir atrás desta pessoa em particular, pois não se trata, em nenhum dos casos, das pessoas, mas do que elas representam. De repente tudo é mato, apenas mato. A prova de física e as pessoas que comparecem no sonho? Estou pedindo de mim mais do que o conjunto do meu ser pode dar. O mato é o oposto do papel branco em que consta a prova de física, é signo de minhas origens e da confusão que é viver. No papel branco podem ficar registradas as provas do que alguém pensou, sentiu, viveu ou sonhou, mas essa brancura e a organização (numa prova, por exemplo) é aquilo que decantou de tudo, do mato, das sombras, das dúvidas, das lágrimas, é só uma tentativa de registro. De mais a mais, escrever prova apenas a necessidade de escrever, uma autonomia que se conquista depois de ter atravessado tantas provas escolares e outras tão ou mais ferrenhas, que não terminam nunca.