Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 8 de outubro de 2011

Guenádi Aigui

ROSA DO SILÊNCIO

e agora
o coração
ou apenas ausência
uma vacância tensa ― como quando arrefece
aos poucos
à espera
o sítio da prece
(o puro ― permanência ― no puro)
ou ― aos arrancos a incipiente dor
(ou ― às vezes possivelmente
dói ― à criança)
frágil desnudo-viva
qual impotência de pássaro

Poesia russa moderna. Trad. Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2001, p.390.

fotografia

Ao conversar com minha irmã mais nova ao telefone, disse-lhe que havia me lembrado dela numa situação única: a primeira vez em que a vi, recém-nascida, voltando do hospital, ainda no carro de meu pai, olhos azuis e o mais lindíssimo. Então ela lamentou não haver nenhum registro fotográfico, luxo esporádico naqueles rincões. Mas ― eu lhe disse ― eu registrei em minha memória.

Julio Cortázar

Um trecho, dos mais líricos e sutis de Rayuela ― impossível não rir ironicamente do destino, quando se jogou amarelinha na infância, sem saber nada além de um mundo chamado infância:

“O jogo da amarelinha se joga com uma pequena pedra que é preciso empurrar com a ponta do sapato. Ingredientes: uma calçada, uma pedrinha, um sapato e um belo desenho feito com giz, preferivelmente colorido. No alto, fica o Céu, embaixo a Terra, é muito difícil chegar com a pedrinha ao Céu, quase sempre se calcula mal e a pedra sai do desenho. Pouco a pouco, porém, vai-se adquirindo a habilidade necessária para salvar as diferentes casinhas (caracol, retângulo, fantasia, esta pouco usada) e um dia se aprende a sair da Terra e levar a pedrinha até o Céu, até entrar no Céu (Et tous nos amours, soluçou Emmanuelle de bruços); o pior é que, justamente nesse momento, quando quase ninguém ainda aprendeu a levar a pedra até o Céu, a infância acaba de repente e se chega aos romances, à angústia do divino foguete, à especulação de outro Céu ao qual também é necessário aprender a chegar. E, por se ter saído da infância (Je n’oublierai pás les temps des cérises, cantarolou Emmanuelle, estendida no chão), esquece-se de que, para alcançar o Céu, é preciso ter, como ingredientes, uma pedrinha e a ponta de um sapato.”

CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.253-254. 

Heráclito e Cortázar

Espantoso o capítulo de O jogo da amarelinha em que Heráclito comparece. É preciso estar preparado para não sucumbir a tanta ousadia e... e não há nomes que bastem para contornar o assombro daquelas curvas linhas, o leitor entra numa espécie de gagueira mental ― patterns pretty as can be

Julio Cortázar: linguagem e criação

“Morelli parece convencido de que, se o escritor continuar submetido à linguagem que lhe venderam, juntamente com a roupa que veste, e o nome e o batismo e a nacionalidade, sua obra não terá outro valor senão o estético, valor que o velho parece desdenhar cada vez mais. Em algum lugar é bastante explícito: segundo ele, não se pode denunciar o que quer que seja se a denúncia for feita dentro do sistema a que pertence o denunciado. Escrever contra o capitalismo com a bagagem mental e o vocabulário que derivam do capitalismo é perder tempo. Serão obtidos resultados históricos como o marxismo e tudo o que você quiser, mas o Yonder não é exatamente história, o Yonder é como as pontas dos dedos que emergem das águas da história, procurando um lugar onde se agarrar. [...] E por isso o escritor tem de incendiar a linguagem, acabar com as formas coaguladas e ir ainda mais longe, por em dúvida a possibilidade de essa linguagem ainda esteja em contato com aquilo que ele pretende nomear. Não tanto as palavras em si, porque isso é o que menos importa, mas a estrutura total de uma língua, de um discurso. [...] Morelli não acredita nos sistemas onomatopéicos nem nos letrismos. Não se trata de substituir a sintaxe pela escrita automática ou qualquer outro truque do gênero. O que ele deseja é transgredir o fato literário total, o livro, se você quiser. Às vezes, na palavra; às vezes, no que a palavra transmite. Procede como um guerrilheiro, faz explodir o que pode, o resto segue seu caminho. Não pense que ele não é um homem de letras.”

CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. 15 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.513.

__________________
* "O que chamamos realidade, a verdadeira realidade que também chamamos Yonder (por vezes ajuda dar muitos nomes a uma entrevisão, já que, pelo menos, evitamos que a noção se feche e se congele), essa verdadeira realidade [...] não é algo que possa vir, uma meta, o último degrau, o final de uma evolução. Não, é algo que já está aqui, em nós. É algo que se sente, sendo suficiente ter a coragem de estender a mão na escuridão." (p.511-512)

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

W. H. Auden

A SOLITÁRIA NATA

Eu ouvia da sombra, numa cadeira de praia,
A gama de ruídos que por meu jardim se espraia
E julgava de toda conveniência se isentasse
Do dom da palavra tanto os vegetais como as aves.

Um tordo sem nome de batismo repetia
O Hino Tordo, que era tudo quanto conhecia.
Por terceiro esperavam as flores roçagantes
Para dizer-lhes, sendo o caso, quais os pares de amantes.

Não seria, nenhum deles, capaz de mentir;
Tampouco havia ali quem sentisse a morte vir-
Lhe ou que, com ritmo ou rima, pudesse dar tento
Da sua responsabilidade pelo tempo.

Ficasse a linguagem para a solitária nata
Dos que contam os dias e esperam cartas.
Ao rir e ao chorar, nós também fazemos ruídos.
Palavras são só para os que estão comprometidos.


THEIR LONELY BETTERS

As i listened from a beach-chair in the shade
To all the noises that may garden made,
I seemed to me only proper that words
Should be withheld from vegetables and birds.

A robin with with no Christian name ran through
The Robin-Anthem which was all it knew,
And rustling flowers for some third party waited
To say which pairs, if any, should get mated.

Not one of them was capable of lying,
There was not one which knew that it was dying
Or could have with a rhythm or a rhyme
Assumed responsibility for time.

Let them leave language to their lonely betters
Who count some days and long for certain letters;
We, too, make noises when we laugh or weep:
Words are for those with promises to keep.

W. H. Auden. Poemas. Trad. José Paulo Paes. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.116-117.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

oásis

No silêncio da tarde, me dirijo à cozinha para tomar água. É quando percebo o que tenho. Sob a transparência do filtro comum, azulado, adquirido com zelo, a água repousa em sua placidez. Aberta a torneira, no copo vibra a água, fazendo valer seu valor de líquido ― líquido, conforme aprendi na escola, insípido, inodoro e incolor. Nenhum dos três adjetivos, essencialmente de negação, faz jus à água. A água sabe de longe a oásis, traz o frescor das coisas que se conquistam com meditada paciência ― a água que se toma para saciar a sede própria do que é vivo. 

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

SEE (curta)

silêncio

O labor do silêncio conforta a alma ―
Quanto menos o eu fala mais há calma.

as letras

“As letras, vejam bem. Que formulação feliz! Letras, reunidas por fios invisíveis tomados por imponderáveis correntes magnéticas. E toda essa azáfama imposta a um cérebro que deveria funcionar impecavelmente, e trabalhar sem ter trabalho. É uma pessoa, vindo na sua direção, ou só uma mente? Uma mente distribuída por livros, páginas, frases repletas de vírgulas, ponto-e-vírgulas, travessões e asteriscos. Um autor conquista um prêmio ou uma cadeira na Academia por seus esforços, ao outro só cabe um osso roído pelos vermes. Os nomes de alguns são dados a ruas e bulevares, os de outros a prisões e asilos. E mesmo depois que todas essas ‘criações’ tiverem sido finalmente lidas e digeridas, os homens ainda estarão atacando uns aos outros. Nenhum escritor, nem mesmo o maior deles, jamais foi capaz de contornar esse fato duro e frio.”

MILLER, Henry. Nexus. Trad. Sergio Flaskman. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.310. 

conversa ao telefone com a analista

― Não posso ir à sessão hoje porque ainda estou com tosse, a garganta arranhando, incomodando.
― Você precisa vir na sessão falar para melhorar sua garganta. 
― (risos)

Dylan Thomas

E A MORTE NÃO TERÁ DOMÍNIO

E a morte não terá domínio.
Nus, os mortos há de ser um.
Com o homem ao léu e a lua em declínio.
Quando os ossos são só ossos que se vão,
Estrelas nos cotovelos e nos pés;
Mesmo se loucos, há de ser sãos,
Do fundo do mar ressuscitarão
Amantes podem ir, o amor não.
E a morte não terá domínio.

E a morte não terá domínio.
Sob os turvos torvelinhos do mar
Os que jazem já não morrerão ao vento,
Torcendo-se nos ganchos, nervos a desfiar,
Presos a uma roda, não se quebrarão,
A fé em suas mãos dobrará de alento,
E os males do unicórnio perderão o fascínio,
Esquartejados não se racharão
E a morte não terá domínio.

E a morte não terá domínio.
Os gritos das gaivotas não mais se ouvirão
Nem as ondas altas quebrarão nas praias.
Onde uma flor brotou não poderá outra flor
Levantar a cabeça às lufadas da chuva;
Embora sejam loucas e mortas como pregos,
Testas tenazes martelarão entre margaridas:
Irromperão ao sol até que o sol se rompa,
E a morte não terá domínio.

*

And death shall have no dominion.
Dead men naked they shall be one
With the man in the wind and the west moon;
When their bones are picked clean and the clean bones gone,
They shall have stars at elbow and foot;
Though they go mad they shall be sane,
Though they sink through the sea they shall rise again;
Though lovers be lost love shall not;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
Under the windings of the sea
They lying long shall not die windily;
Twisting on racks when sinews give way,
Strapped to a wheel, yet they shall not break;
Faith in their hands shall snap in two,
And the unicorn evils run them through;
Split all ends up they shan't crack;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
No more may gulls cry at their ears
Or waves break loud on the seashores;
Where blew a flower may a flower no more
Lift its head to the blows of the rain;
Though they be mad and dead as nails,
Heads of the characters hammer through daisies;
Break in the sun till the sun breaks down,
And death shall have no dominion.
 

CAMPOS, Augusto. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.334-337. 

Alexei Bueno

A verdade da morte não nos serve
Como não serve um manto
De rasgos sorridente
No carrancudo inverno.

Assim também dos deuses a verdade
De eles serem mentira,
Caso o sejam, não vale
O preço de a encontrarmos.

Antes, no nosso sonho, tão maiores
Que o Estige e que Caronte,
Vivamos, não no que há,
Mas no que haver devera.

E, cumpra-se ela ou não, vestindo a túnica
De uma talvez mentira
Mas áurea, ao chão joguemos
Os trapos da verdade.

Para rijos cruzarmos o árduo tempo,
Quais deuses, quais os sábios
Deles iguais, que o reles
Não sabem conhecer.

BUENO, Alexei. Poemas gregos. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.193-194.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

enganos

As palavras armam sentenças, círculos concêntricos potencialmente indeléveis envolvendo cada ser. Mas existe um lugar ― brecha ― onde o milagre das letras alinhadas uma após outra dá ensejo à vida. É este o único lugar que interessa à criação. Um verso, colhido ao acaso: “A verdade da morte não nos serve”. O que é a verdade da morte? É cultivar a vida em função da morte? É cultivar a morte pensando cultivar a ilusão da vida? O poeta parece conhecê-la: o próprio modo com que o verso é enunciado informa, pela noção de pressuposição, que o poeta está dispensando algo que visitou: “não nos serve”. A morte, porém, não deixa de ser norte para a vida. Ninguém consegue esquecer que finará um dia, embora o correr da vida faça disso uma espécie de certeza adormecida. Então o verso parece querer dizer outra coisa: o que quer que receba o nome de criação precisa buscar seu norte em paragens distintas da morte ― e da própria verdade. Talvez a própria expressão “verdade da morte” seja um indício de que a morte está nisso que se chama verdade, quando deixa de ser busca para tornar-se formulário. O que é a verdade? Para além desta pergunta tão enigmática quanto o que nela se pergunta, haverá trilho seguro que leve até a verdade? Alguém poderia responder, sem titubear, à pergunta que Alice, em sonho, dirige à sua gata: “Vamos, Dinah, conte-me a verdade: algum dia você já comeu um morcego?” É o próprio narrador quem adverte, um pouco antes, quando Alice baralha as perguntas: como não sabia responder a nenhuma delas, o jeito como as fazia não tinha importância. O jeito com que uma pergunta é feita afeta sua resposta. 

Herberto Helder

Há uma árvore de gotas em todos os paraísos.
Com o rosto molhado,
eu posso ficar com o rosto molhado,
com os olhos grandes.
Neste lugar absoluto pelo sopro,
fervem as víboras de ouro aos nós
sobre as pedras enterradas. Leopardos
lambem-me as mãos giratórias.
Eu abro a pedra para ver a água estremecendo.
A água embebeda-me.
Como nos corredores de uma casa brilha o ar,
brilha como entre os dedos.
― A minha vida é incalculável.

Herberto Helder. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.409.

Óssip Mandelstam - isso é primoroso!

Como pedra do céu, na terra, um dia,
Um verso condenado caiu, sem pai, sem lar;
Inexorável, a invenção da poesia
Não poderá ser mudada, e ninguém a irá julgar.

CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.125. Bastidores.

Óssip Mandelstam

CASSINO

Não gosto de prazer premeditado.
O mundo, às vezes, é um borrão escuro.
Eu, meio bêbado, estou condenado
A ver as cores de um viver obscuro.

O vento brinca e às nuvens descabela.
A âncora cai no fundo do oceano.
E inanimada, como numa tela,
A alma pende sobre o abismo insano.

Mas amo estar nas dunas do cassino,
A larga vista da janela baça,
Um fio de luz na toalha que desbota,

À minha volta o mar verde-citrino,
Vinho, como uma rosa, em minha taça
E eu a seguir o voo da gaivota.

CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.119.

vida imitando a arte

Se não entendo um conto de Julio Cortázar, porque é que preciso entender a vida?

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Julio Cortázar

Tia explicada ou não

Uns mais outros menos, meus quatro irmãos se dedicam à filosofia. Leem livros, discutem entre si, e são admirados a distância pelos outros da família, fiel ao princípio de não se intrometer nas preferências alheias e inclusive favorecê-las na medida do possível. Estes rapazes, que me merecem um grande respeito, discutiram mais de uma vez o problema do medo de minha tia, chegando a conclusões sombrias, mas talvez razoáveis. Como costuma acontecer em casos semelhantes, minha tia era a menos informada dessas assembleias, mas desde essa época a preocupação da família se acentuou ainda mais. Há anos acompanhamos a tia em suas titubeantes expedições da sala ao pátio, do quarto ao banheiro, da cozinha à despensa. Nunca achamos fora de propósito que ela se deitasse de lado e durante toda a noite conservasse a mais absoluta imobilidade, os dias pares para o lado direito, e os ímpares do lado esquerdo. Nas cadeiras da sala de jantar e do pátio, a tia se instalava muito ereta; não aceitaria por nada deste mundo a comodidade de uma cadeira de balanço ou de um sofá Morris. Na noite do Sputnik a família jogou-se no chão do pátio para observar o satélite, mas a tia ficou sentada e no dia seguinte teve um bruto torcicolo. Pouco a pouco nós fomos nos habituando e hoje estamos resignados. Nossos primos irmãos nos ajudam e fazem referência ao assunto com olhares inteligentes e dizem coisas tais como: “Ela tem razão.” Mas por quê? Nós não sabemos e eles não querem explicar. Por mim, por exemplo, acho muito cômodo ficar de costas. O corpo todo se apoia no colchão ou nos ladrilhos do pátio, a gente sente os calcanhares, as panturrilhas, as coxas, as nádegas, as espáduas, os braços e a nuca, que dividem o peso do corpo e o distribuem por assim dizer no chão, aproximam-no tão bem e tão naturalmente dessa superfície que nos atrai com voracidade e parece querer engolir-nos. É curioso que, para mim, ficar de costas seja a posição mais natural e às vezes desconfio que minha tia lhe tem horror por isso mesmo. Eu a acho perfeita e penso que no fundo é a mais confortável. Sim, disse bem: no fundo, bem no fundo, de costas. Até me dá um pouco de medo, algo que não consigo explicar. Como eu gostaria de ser igual a ela, e como não consigo.

CORTÁZAR, Julio. Histórias de cronópios e de famas. Trad. Glória Rodriguez. 12.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.34-35.

domingo, 2 de outubro de 2011

Bertold Brecht

À POSTERIDADE

I
Não há dúvida que vivo numa idade escura!
Uma palavra sem malícia é um absurdo. Uma fronte suave
Revela um coração duro. Aquele que está rindo
Ainda não escutou
As terríveis notícias.

Ah, que tempo é este
Em que falar de árvores é quase um crime
Por ser de certo modo silenciar sobre injustiças!
E aquele que tranquilamente atravessa a rua
Não está fora do alcance de seus amigos
Em perigo?

É verdade: ganho minha vida
Mas, palavra de honra, é só por acidente.
Nada que eu faço me dá direito a meu pão.
Por acaso fui poupado: se minha sorte me abandona
Estou perdido.

Há quem me diga: come e bebe. Dá-te por satisfeito
Mas como é que posso comer e beber
Se meu pão foi arrebatado aos famintos
E meu copo d'água pertence aos sedentos?
E mesmo assim como e bebo.

Gostaria de ser sábio.
Os livros antigos nos informam o que é sabedoria:
Evita os embates do mundo, vive tua curta vida
Sem temer ninguém
Sem recorrer à violência
Pagando o mal com o bem ―
Não a satisfação do desejo mas o alheamento
Passa por sabedoria.
Eu não posso fazer nada disso:
Não há dúvida que vivo numa idade escura!

II
Cheguei às cidades num tempo de desordem
Quando a fome imperava.
Cheguei entre os homens num tempo de levante
E com eles revoltei-me.
E assim passou-se o tempo
Que me foi dado sobre a terra.

Comi meu pão entre massacres.
A sombra do assassínio pairou sobre meu sono
E nas vezes que amei, amei com indiferença.
Considerei minha natureza com impaciência.
E assim passou-se o tempo
Que me foi dado sobre a terra.

No meu tempo as ruas conduziam à fama gulosa
O que eu dizia me atraiçoava ao carrasco.
Pouca coisa podia fazer. Porém sem mim
Os dominantes ter-se-iam sentido mais seguros.
Pelo menos era essa a minha esperança.
E assim passou-se o tempo
Que me foi dado sobre a terra.

Pequena era a força dos homens. O objetivo
Ficava muito longe.
Fácil de ver, embora para mim
Quase inatingível.
E assim passou-se o tempo
Que me foi dado sobre a terra.

III
Vós que emergireis deste dilúvio
Em que nos afundamos
Pensai ― 
Quando falardes em nossas fraquezas ― 
Também na idade escura
Que lhes deu origem.
Pois assim passamos, mudando de país como de sapatos
Na luta de classes, desesperando
Quando só havia injustiça e nenhuma resistência.

Pois sabíamos até bem demais
O próprio ódio da imundície
Faz a fronte ficar severa.
A própria raiva contra a injustiça
Faz a voz ficar áspera. Ai de nós, nós que 
Queríamos lançar as bases da bondade
Não pudemos nós mesmos ser bondosos

Mas vós, quando afinal acontecer
Que o homem possa ajudar seu próximo
Não nos julgueis
Com muita severidade...

FAUSTINO, Mário. Poesia completa e traduzida. Org. Benedito Nunes. São Paulo: Max Limonard, 1985, p.304-309.