Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 21 de maio de 2011

John Butler Trio: um oceano de notas, cordas e sons

Alexei Bueno

Da cinza

Fita as tuas mãos, mãos que não prendem,
E os dedos teus, que nada enlaçam,
Estalactites que se estendem
E onde do tempo as gotas passam.

Nada em seu vácuo se aconchega,
Nem mesmo o vácuo de outras mãos,
Nelas só o fogo se congrega,
O que arde em tudo. Os brilhos vãos.

BUENO, Alexei. Em sonho. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.385. 

pórtico

Tudo que se precisa 
é de um loucar 
(fusão imprevista 
de local e lugar) 
para olhar.

para lembrar a mim mesma o que posso estar perdendo também

Há cerca de um ano atrás, mais ou menos, postei este texto. Desde então, muita coisa virou e revirou. No entanto, cá estou eu às voltas com o tema:

"O homem não é necessariamente delicado ― daí a urgência de se preservar, na vida social, as condições para a vigência de alguma delicadeza. Erramos ao chamar os atos que nos repugnam de desumanosO homem, não o animal, usa de violência contra seu semelhante. O homem inventou o prazer da crueldade: o animal só mata para sobreviver. O homem destrói o que ama ― pessoas, coisas, lugares, lembranças. Se perguntarem a um homem por que razão ele se permitiu abusar de seu semelhante indefeso, ele dirá: eu fiz porque nada me impediu de fazer. O abuso da força  é um gozo ao qual poucos renunciam. Além disso, o homem é capaz de indiferença, essa forma silenciosa e obscena de brutalidade. O homem atropela o que é mais frágil que ele ― por pressa, avidez, sofreguidão, rivalidade ―, sem perceber que com isso atropela também a si mesmo." 

KEHL, Maria Rita. Delicadeza. In: NOVAES, Adauto (Org.). A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações. Rio de Janeiro: Agir; São Paulo: Edições SESC, 2009, p. 453.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

percepção

Sou professora... e escrevo. Não é o mesmo que ser escritora, que soa como profissão. A profissão veio em forma substantivada, enquanto escrever envolve uma ação diferente, que tem um fim em si mesma. Escrever é uma demanda, nunca cansa, enquanto o ofício está ligado à sobrevivência, embora exercido com apreço no caso de condições favoráveis. Escrever tornou-se uma necessidade imperiosa, e a cada volta da escrita descubro o impossível que ficaria obnubilado se palavras não fossem trazidas a lume, movidas pela necessidade de acessar o impossível. Poderia dizer que minha relação com as palavras é quase tátil se isso não fosse uma expressão esvaziada de tanto já ter sido dita. Como falar então deste quase tocar a palavra, dessa relação íntima que se renova a cada dia? Sinto-as, as palavras, nos dedos, enquanto estou escrevendo, e sei que nelas está uma parte do que busco. A outra, não sei... ainda. A novidade de cada dia é o modo com que a rede vai se armando. A propósito, esta semana Drummond fez-me a gentileza de confirmar o que já intuía, no sentido de unir pontas aparentemente desconexas: "No elevador penso na roça / na roça penso no elevador." ("Explicação")

Anselm Kiefer, Everyone Stands Under His Own Dome of Heaven, 1970

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Chico Buarque: Cotidiano (interpretação impecável)


e essas coisas que diz toda mulher... 
faltou a restritiva: toda mulher que... 

azul é a cor do deserto... no mar

O hífen, apartando palavras com a aparência de uni-las, me fez pensar nos números primos. Aí descobri que há um livro no mercado, A solidão dos números primos, que parece interessante e talvez venha a ler. Porque sempre gostei de estudar, ainda aquilo que eu parecia entender, como a matemática, para descobrir bem depois que havia entendido apenas a superfície, as operações básicas. Os números servem-me apenas para atormentar, lembrar contas, fazer cálculos inúteis acerca do que não me interessa: colocar tudo na ponta do lápis, como imagem de vida planejada, regrada. É-me impossível fazer planilhas domésticas, como aquelas receitadas pelos quadros do Fantástico. Minha competência permite-me apenas alinhar palavras com a ponta do lápis, ou dedos, e sempre que o hífen me perturba consulto o dicionário. Não sei se dispensar os números pelas palavras foi escolha acertada, como entre par ou ímpar. Mas é que nem mesmo me ocorreu, alguma vez, que havia escolha, eu sempre quis a beleza. Que há beleza nos números e suas complexas coreografias é mais do que certo, como dois e dois são..., apenas eu nunca vi, vislumbrei. Então é lógico que uma parte expressiva do mundo está definitivamente fechada para mim, como um quarto agora escuro cuja chave foi-me de relance oferecida, e eu não alcancei discernir bem o que era então. Prestava atenção em outras coisas, na beleza possível das aulas de geografia: azul é a cor do deserto no mar: a citação do livro enfadonho em meio a descrições inutilmente armazenadas na memória, e que agora a memória recompõe, porque nunca a esqueceu, foi um prelúdio de minha disposição favorável às palavras, que eu amo unir como se pudesse criar uma outra geografia, a geografia possível de meu ser, hesitante, alheio a hífens e a tudo que diz respeito à memorização de regras e normas, por saber que qualquer coisa só se sabe pelo contato íntimo. 

clique na imagem para ampliar. fonte: internet

Torquato Neto

DESEJO

Mas...
se eu pudesse um dia
com as mãos o sol pegar;
a lua apertar entre os meus pés
e
trêmulo de prazer,
em plena Via Láctea, todos os astros reter comigo,
um gozo frenético e sem fim,
apesar de tanta infelicidade
eu chegaria a ter pena de mim mesmo
pois, indiscutivelmente,
eu estaria louco,
demente!

NETO, Torquato. Torquatália {do lado de dentro}. Org. Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p.35.

Prefeito de Belo Horizonte decide vender parte de uma rua...!?

É o que pode ser conferido com mais detalhes no site criado para tentar reverter o absurdo da situação, que lesa o direito dos moradores. Afinal, a quem pertence as ruas? Pode o poder público dispor delas comercializando-as em prol de interesses privados? A quem pertence as ruas de uma cidade? O site é este: Salve a Rua Musas.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

estradas

Pelos caminhos da linguagem vou traçando estradas que me são necessárias. As recordações da infância, frequentes nos últimos tempos, convocam-me a uma fidelidade com quem outrora fui, antes de me duvidar. Só escrevendo isso consigo saber. Quando foi que comecei a duvidar de mim? Dúvida retrospectiva, aliás, lançando sombras na criança que corria ao sol. Impossível. As estradas daquela criança levaram a uma moça desajeitada, desconjuntada, e essa moça se duvidou, duvidou. Mas o melhor dessa moça é aquela criança que fui, que ela foi, que tinha sonhos bem ousados para seu meio tacanho. Confesso que esses sonhos ainda não se concretizaram de todo, apesar de sua aparente simplicidade. Tão simples que constrange mesmo falar, e para o bem deles talvez seja melhor continuarem um segredo entre eu e minha analista. Era isso: eu queria aparentemente pouco, mas depois descobri que esse pouco tinha algo de luxo, o luxo da liberdade de viver. 

libertação

Faz muito tempo que assisti Perdas e Danos (Damage, Louis Malle, 1992), com os ótimos Jeremy Irons e Juliette Binoche. Um filme para se encontrar o que quiser, sem pedantismo ou tintas moralistas. A lembrança do filme veio a propósito de uma conversa de fim de dia, acerca da hipocrisia. Então aventei a hipótese de que deve haver, na vastidão do Universo, seres superiores a nós, que desconheçam esse mecanismo comezinho e humano que é uma espécie de trapaça que se faz com o próprio pensamento por se acreditar que assim se vive melhor. Numa aula, uma aluna brincou dizendo que era bom os professores não serem capazes de ler os balões de pensamento. E vice-versa. Mas essa mascarada cansa. A hipocrisia é exatamente uma trapaça que a pessoa faz consigo mesma, julgando obter algum benefício na balança das relações. No entanto, o que está em jogo é outra coisa, são as forças que atravessam os seres: quanto maior o recurso à hipocrisia, mais fraco o ser. Voltando ao filme, as cenas finais evidenciam que é preciso assumir a responsabilidade pelas escolhas, não importando o tamanho do dano. Os fortes conseguem fazê-lo. É possível vislumbrar, quando as faces se desnudam, que ali não havia espaço para a hipocrisia, nunca houve, porque há algo de cálculo, de premeditado nela. Esse cálculo torna ambíguas as relações, e é muito salutar poder despojar-se disso, como quem sacode a poeira da rua ao chegar em casa. 

terça-feira, 17 de maio de 2011

Adriana Calcanhoto: Minha Música

Alice

Lendo o famoso diálogo de Alice com a lagarta, esta fumando sobre um cogumelo (e a sugestão de que um lado faz crescer e o outro diminuir de tamanho), não deixa de ser estranho pensar que a lagarta lança uma questão sem resposta, haja vista o diálogo andar em círculos, como faz lembrar o próprio ciclo de vida da lagarta: "Quem é você?" Como encontrar a porção exata dos dois lados do cogumelo que satisfaça a questão? Talvez a lagarta estivesse perguntando: "Quem você pensa ser?" Alice sabia-se Alice, apesar de tudo, mas quem a lê talvez não tenha tanta certeza disso, embora tenha a seu dispor palavras com que organizar-se. 

liberdade

Liberdade é correr certos riscos, apenas os necessários, para saber se se trata de fio desencapado ou não. Se eu não escrever, corro o risco de ficar com o fio desencapado na mão, a energia dele me fustigando, me dando choques que não sou capaz de suportar. Mas, quando escrevo, a energia oriunda do risco necessário de viver encontra um escoadouro, e eu posso continuar correndo riscos sem temer levar choque. Ou pelo menos podendo amortecer o choque, quando ele se fizer inevitável.

João Cabral de Melo Neto

QUESTÃO DE PONTUAÇÃO

Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);

viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):

o homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.

MELO NETO, João Cabral. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.274. 

Graciliano Ramos: a escrita no cárcere

De volta. Casa nova. Sentia uma falta difusa do blog, mas ao mesmo tempo voltei-me para a casa, para o novo lar, para os arranjos da mudança, para a leitura. Terminei Memórias do cárcere ― na verdade não conseguia parar de ler. Um livro que encerra um paradoxo: pede leitura cerrada, mas da qual é difícil falar, pois o que fala é a leitura, são os signos dispostos de tal forma que se enceta uma narrativa única. Mas a denúncia do cárcere não deixa de apunhalar o leitor, quando se sabe os horrores a que foram submetidos os presos na Colônia Correcional da Ilha Grande, que quase custou a vida de Graciliano, e levou a vida de tantos outros encarcerados:

Chegamos à cancela. E experimentei de chofre a necessidade imperiosa de expandir-me numa clara ameaça. A desarrazoada tentação era tão forte que naquele instante não me ocorreu nenhuma ideia de perigo:
― Levo recordações excelentes, doutor. E hei de pagar um dia a hospitalidade que os senhores me deram.
― Pagar como? exclamou a personagem.
― Contando lá fora o que existe na ilha Grande.
― Contando?
― Sim, doutor, escrevendo. Ponho tudo isso no papel.
O diretor suplente recuou, esbugalhou os olhos e inquiriu carrancudo:
― O senhor é jornalista?
― Não senhor. Faço livros. Vou fazer um sobre a Colônia Correcional. Duzentas páginas ou mais. Os senhores me deram assunto magnífico. Uma história curiosa, sem dúvida.
O médico enterrou-me os olhos duros, o rosto cortante cheio de sombras. Deu-me as costas e saiu resmungando:
― A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever.

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 44.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.516.