Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 6 de maio de 2011

delicadeza

Nada, nem a coisa mais sublime que fizermos, o gesto mais desprendido e belo, vai revelar a nossa delicadeza ante o mundo se o mundo não a quiser. Ao contrário, mesmo as palavras e seu empenho acabam revelando a insuficiência. Por isso a poesia é tão importante, não para conter a aspereza alheia, mas para resistir-lhe, pois ela fatalmente virá, não importa quão delicados sejamos, queiramos ou tentemos ser. Há algo de inóspito nas relações, revelando cactos que se querem flores. Então, no meio da tarde, ouve-se um beijo estalar, e o mundo parece provisoriamente redimido. Porque entre o cacto e a flor há toda uma gradação de sentidos, como um holograma que ora revela um, ora outro. 

brisa

Enquanto arrumo as coisas para a mudança, abri a porta da casa onde moro pela última noite para verificar a caixa do correio. E uma brisa muito agradável arejava a área externa. Resolvi deixar a porta aberta, para a brisa entrar. Nunca, antes, eu havia notado essa brisa, ou se notei não lhe dei importância, talvez pelo horário, quase meia noite, talvez pelo hábito de chegar, entrar rápido e fechar a porta. Então sei que não abri a porta para verificar o correio: abri-a para receber a brisa agradável, deixar o frescor adentrar a casa. Porque amanhã não estarei mais aqui, e é preciso que as coisas saiam um pouco de seus eixos para que esses momentos de intensa liberdade possam ter ensejo: a porta aberta da casa à noite, sem qualquer perigo. Estou deixando isso, pelo conforto de um apartamento, cuja porta ficará permanentemente fechada. Mas não se trata de uma negociata, em que perdas e ganhos são computados. Porque sei que levarei esta porta aberta comigo, minha liberdade.

horror

Meu horror à violência deve vir de eras primordiais. Ela me cerca, acua, está em toda parte. Tento domá-la em mim, o que percebo dela em mim, e o que percebo já me assusta, me deixa desassossegada. O que faço com a violência que recebi? Consigo ter sua dimensão? É certo que não, há uma anestesia a impedir a percepção do quanto se está imerso na violência. Mas o pouco que percebo já é suficiente para me horrorizar, e desejar nascer de novo. 

mudança

Encaixotar livros, dois anos de Rio de Janeiro, histórias. Acomodar em caixas de papelão os pertences, com o fim de mudar de endereço, e algo mais, porque ninguém viaja em vão.

Halber Schlaf

Semi-sono

Qual uma roupa sussurra na escuridão,
Na beira do céu as árvores cambaleiam.

Salva-te no coração da noite
Enterra-te no escuro rapidamente
Como em favos. Sê um pequeno ente,
Desce da tua cama.

Algo quer atravessar as pontes,
Raspando um rastro pesado.
De susto, as estrelas estão brancas.

E a lua com suas ancas
Ginga no céu riscado
Com as costas qual dois montes.

Poesia expressionista alemã: uma antologia. Org. e trad. Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p.110-111. Edição bilingue ilustrada. 

Memórias do cárcere - IV (o valor de cada um)

“Essa deplorável estreia varreu-me certas nuvens importunas: sempre me excedera em afirmações categóricas, mais ou menos vãs; achava agora uma base para elas. Evidentemente as pessoas não diferiam por se arrumarem numa ou noutra classe; a posição é que lhes dava aparência de inferioridade ou superioridade. Evidentemente. Mas evidentemente por quê? A observação me dizia o contrário. Homem das brenhas, afeito a ver caboclos sujos, famintos, humildes, quase bichos(*), era arrastado involuntariamente a supor uma diversidade essencial entre eles e os patrões. O fato material se opunha à ideia ― e isto me descontentava. Uma exceção rara, aqui, ali, quebrava a monotonia desgraçada: o enxadeiro largava o eito, arranjava empréstimo, economizava indecente, curtia fome, embrenhava-se em furtos legais, chegava a proprietário e adquiria o pensamento e os modos do explorador(**); a miserável trouxa humana, batida  a facão e a vergalho de boi, resistente ao governo, à seca, ao vilipêndio, resolvia tomar vergonha, amarrar a cartucheira à cinta, sair roubando, incendiando, matando como besta-fera(***). Essas discrepâncias facilmente se diluíam no marasmo: era como se os dois ladrões, o aceito e o réprobo, houvessem trazido ao mundo a condição inelutável: pequenas saliências no povo imóvel, taciturno, resignado. Naquele instante a aspereza do estivador me confirmava o juízo. Lá fora sem dificuldade me reconheceria num degrau acima dele; sentado na cama estreita, rabiscando a lápis um pedaço de papel, cochichando normas, reduzia-me, despojava-me das vantagens, acidentais e externas. De nada me serviam molambos de conhecimentos apanhados em livros, talvez isso até me impossibilitasse reparar na coisa próxima, visível e palpável. A voz acre me ofendera os ouvidos, arrancara-me preocupações de espanto, abafadas nas preocupações do Coletivo: ninguém ali estava disposto a lisonjear-me. Aceitei o revés como quem bebe um remédio amargo. Afinal a minha opinião se confirmava.

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 44.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.234-235.

(*) Fabiano.
(**) Paulo Honório.
(***) Cangaceiros.

Graciliano alude a um episódio em que, designado representante do Coletivo na prisão, teve as propostas, na primeira reunião, quase todas tachadas de besteira por um estivador, sem direito à réplica: “― Conversa. A gente está vendo que isso é bom. Não vale a pena estragar tempo. Vamos adiante.” O mesmo utilitarismo do patrão.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Arvo Pärt: Sueño de Angel

Jorge Luis Borges

PÁTIO

Com a tarde
Cansaram-se as duas ou três cores do pátio.
A grande franqueza da lua cheia
Já não entusiasma o seu habitual firmamento.
Hoje que o céu está frisado,
Dirá a crendice que morreu um anjinho.
Pátio, céu canalizado.
O pátio é a janela
Por onde Deus olha as almas.
O pátio é o declive
Por onde se derrama o céu na casa.
Serena
A eternidade espera na encruzilhada as estrelas.
Lindo é viver na amizade obscura
De um saguão, de uma aba de telhado e de uma cisterna.

BANDEIRA, Manuel. Poemas traduzidos. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009, p.360.  

quarta-feira, 4 de maio de 2011

All Along The Watchtower (Bob Dylan/Jimi Hendrix by Eric Johnson)


“There must be some way out of here,” said the joker to the thief
“There’s too much confusion, I can’t get no relief
Businessmen, they drink my wine, plowmen dig my earth
None of them along the line know what any of it is worth”

“No reason to get excited,” the thief, he kindly spoke
“There are many here among us who feel that life is but a joke
But you and I, we’ve been through that, and this is not our fate
So let us not talk falsely now, the hour is getting late”

All along the watchtower, princes kept the view
While all the women came and went, barefoot servants, too

Outside in the distance a wildcat did growl
Two riders were approaching, the wind began to howl

Copyright © 1968 by Dwarf Music. Site oficial de Bob Dylan. Os muitos covers que esta música encontrou, não contando o Hendrix, só fazem provar sua vitalidade.

Iberê Camargo, Núcleo, 1963

Memórias do cárcere - III

Passados o esgotamento com a escrita da tese e a ressaca da defesa, estou podendo, quando as obrigações do trabalho e outras que, de um modo ou de outro, são aborrecidas, permitem, ler por prazer, ler sem outro compromisso que não seja a satisfação que a literatura traz. Às voltas com Memórias do cárcere, constato que de fato é um livro imperdível. Um verdadeiro manual de sobrevivência, além de tudo. Não é Paulo Honório, não é o narrador impessoal de Vidas Secas: é o homem forjado em Infância, que encontrou na serenidade o antídoto para enfrentar as adversidades: 

“Apesar da confusão, devia aparentar calma, pois o carcereiro me indicou, largou uma frase que me feriu como uma chicotada:
― Este parece um cadeeiro velho.
Estremeci:
― Hem?
― Entra como se estivesse em sua casa.
Cheio de vergonha, nada respondi, pois me faltavam elementos para refutar a opinião do homem. Se ele, observador profissional, me via assim, teria lá suas razões. Ponderei, extingui melindres. Tinha motivo para escandalizar-me? Não. Em duros casos, a observação podia ser considerada elogiosa. Consigo realmente ambientar-me depressa, acomodar-me às circunstâncias. Percorrendo o sertão, muitas vezes, quando a noite descia, amarrei o cavalo a uma árvore, envolvi-me na capa, estirei-me na terra e dormi, tranquilo e só. Não seriam piores que cobras e outros bichos do mato os habitantes da prisão. Mas que teria eu feito para o indivíduo confundir-me com eles? Muitos ali aparentavam serenidade, riam, falavam naturalmente, e a preferência me tocara. Esquisito.”

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 44.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.179-180. 

terça-feira, 3 de maio de 2011

EVILLUTION (VFS)

explicação dada sem ninguém pedir

Coloquei uma fotografia mais antiga para estampar o blog, de meados de 2007, tirada pela minha irmã na Praia do Recreio. Com uma ou outra exceção, as imagens mais recentes que coloquei de mim traíam alguma coisa de artificial (aos meus olhos). Não que fotografias não sejam artifícios. Mas é que estou num momento movediço, de intensas transformações, e isso aparece nas imagens (novamente, aos meus olhos). Apenas eu posso saber o que é possível saber de mim. Então encontrei nesta imagem mais antiga a serenidade que não estou conseguindo entrever nas imagens mais recentes. E há uma espécie de verdade nisso, para além das transformações físicas. Preciso entender o que está tumultuando minha face. 

Murilo Mendes

HISTÓRIA

Os mares se contraem,
As nuvens esticam as asas.
O espaço abre-se em sedes e clamores
Dos que nasceram há mil anos
E dos que ainda vão nascer.
Há uma convergência de presságios
Nos jardins cobertos de rosas migradoras
E nos berços onde dormem crianças com fuzis.

O espírito poderoso que fundirá os tempos
Espera, impaciente, nos átrios celestes.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994, p.330.

Emily Dickinson

Há uma sutil agulha que costura
A Fé que se puir ―
Não se vê aparência de remendo ―
É etéreo o cerzir.

E embora sinta-se no uso diário
Que algo ali se alterou
Fica tão confortável e folgado
Como quando rasgou.


To mend each tattered Faith
There is a needle fair
Though no appearance indicate ―
‘Tis threaded in the Air ―

And though it do not wear
As if it never Tore
‘Tis very comfortable indeed
And spacious as before ― 

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.256-257. 

Rainer Maria Rilke: Livro de Horas

Minha vida não é esta hora a pique
em que me vês tão afobado.
Eu sou uma árvore em frente ao interior de mim.
Sou uma só de minhas muitas bocas
e aquela que primeiro há de fechar-se.

Sou aquele intervalo entre duas notas
que só dificilmente se harmonizam,
e é quando o tom da morte vai mais alto.

Mas no escuro intervalo as duas soam,
trêmulas ambas.

E é bonito o canto.

RILKE, Rainer Maria. Livro de horas. Trad. Geir Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p.35.

domingo, 1 de maio de 2011

sobre a plantinha do post anterior

Nos pastos de minha infância, deparava-me com uma planta mui graciosa, conhecida popularmente como dormideira ou sensitiva. Era do tipo herbácea, crescia pouco. A graça estava nas flores, que a um leve toque se fechavam. Gostei quando descobri seu nome científico, traía muita coisa de feminino. Pois bem. Ao justificar meu silêncio a uma amiga mais do que querida, lembrei-me da tal plantinha, dizendo-me no momento uma sensitiva ao contrário: reagindo a estímulos. Passiva, portanto. E uma estranha paz me invadiu. Não sei se paz e passividade têm mais em comum além da sonoridade, mas os pastos da infância dizem-me que os amigos, por serem tais, vão entender o silêncio, o laconismo recente, porque chega uma hora que o afeto fala por si: não é necessário ficar dando mostras, basta apenas estar presente, mesmo à distância, mesmo ausente. A vida de cada um tem demandas próprias, é imperiosa. E escrever continua-me imperioso, aqui meu silêncio entorna em palavras cujo único estímulo parece ser mesmo a necessidade de escrever, de atuar no mundo pela linguagem. Pretensão? Não, escrevo do mesmo modo como tocava aquelas flores (ainda as estou tocando), e as palavras, ao meu toque, se abrem.

convite de defesa de tese de minha amiga Renata

Chico Buarque: Construção


Interpretação impecável. O que cada um constrói com seu trabalho? Alguns levantam paredes, outros edificam muros, outros alinhavam ideias, que podem reforçar os muros ou erodi-los, quando não são os próprios muros. E há os que criam. A concisão extrema dos versos de Drummond:

"Em verdade temos medo. 
Nascemos escuro. 
As existências são poucas: 
Carteiro, ditador, soldado. 
Nosso destino, incompleto." 
["O medo", A rosa do povo

portas

Já tive muitas portas fechadas. Mas o decurso da vida me mostrou que elas abriram outras, e que estas outras esperavam avidamente por se abrir: elas precisavam se abrir. A renovação veio das portas que se fecharam, obrigando-me a abrir outras, as quais me mostraram o quão estreitas e limitadas eram as que se fecharam, a tal ponto que às vezes eu sequer conseguia nomeá-las, mas que depois me deram a medida da minha miopia. Mas por que então insistia em abri-las? Porque há um componente de cegueira em todo movimento que se faz, o passo seguinte (a porta que se abre) depende do passo anterior, não se faz sem ele. Não existe conhecimento gratuito, portas não se abrem pela simples força da vontade ou da imaginação. Eu quis abrir uma porta, ela era estúpida, fechou-se para mim. Mas neste movimento eu não era estúpida, e outras portas estavam se abrindo sem que eu percebesse de imediato, mas de todo modo eram estas portas as que contavam, e que se abriram, como se as coisas mais fortuitas fossem de fato as decisivas. 

primeiro de maio: algumas ponderações colhidas por aí



Tarsila do Amaral, Operários, 1933 (aqui)

“Se o capitalista fosse um bruto, eu o toleraria. Aflige-me é perceber nele uma inteligência, uma inteligência safada que aluga outras inteligências canalhas. Esforço-me por alinhavar esta prosa lenta, sairá daí um lucro, embora escasso ― e este lucro fortalecerá pessoas que tentam oprimir-me. É o que me atormenta. Não é o fato de ser oprimido: é saber que a opressão se erigiu em sistema.” [RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 44.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.92.]

E nunca é demais lembrar o conto "Primeiro de Maio", de Mário de Andrade. De fato, a narrativa do capitalismo mostra uma face obscura a que, mal ou bem, podemos até nos ter acostumado (será?), mas a que é impossível se afeiçoar. Gostaria de ter competência para falar sobre isso.