Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Belo Horizonte (escrito num precioso parêntese)

Belo Horizontem (apanhado do Rubem Braga, 
conforme a memória distante do livro que ficou no Rio).
Hoje.
Amanhã.
Não sei por que não chamam a esta de
cidade maravilhosa.
Talvez seja a cidade,
talvez seja apenas meu olhar,
talvez seja a companhia certa dos amigos,
que me traz um sentimento raro de pertencimento,
aquele de que fala a Clarice Lispector,
que encontro aqui, e me é um completo mistério.
Talvez seja a ação do tempo e da distância
criando esse complexo de sensações,
por efeito da saudade,
palavra ímpar da língua portuguesa.
Talvez tudo isso e um "a mais".
Mas, disse o saudoso poeta (Carlos "José" Drummond de Andrade),
Minas não há mais.
Eu amo Minas Gerais.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Genesis - The Carpet Crawlers

"professora, os seus olhos brilham"

As aulas de iloveyou da adolescência me fizeram escorregar para as aulas de português e literatura que ministrei, ano passado, para os pré-adolescentes do 6º ano. Das muitas coisas, boas e ruins, que escutei deles, havia um aluno, um tanto aéreo (parecia constantemente estar gravitando em outra órbita), que virava para mim e exclamava, às vezes do nada, Professora, os seus olhos brilham!, com uma voz de menino assustado que só fui entender bem depois, quando o surpreendi às sete da manhã chorando compulsivamente debruçado sobre a carteira. Violência doméstica, um filme conhecido e via de regra censurado pelas próprias vítimas, em geral pelo medo. Então eu intui o porquê da outra órbita e o olhar dirigido para o nada daquele garoto que se esquivava do meu olhar. E que sua iniciação na vida estava sendo brutal. Dizer que não sofri violência doméstica? Não vou dizer, não quero estragar o post. Preservei o brilho nos olhos, ao que parece, pois são outros olhos os que o veem. Adquiri, é certo, um horror absurdo à violência, e embora saiba ser quase impossível esquivar-me dela, tento ao menos me esquivar do quinhão que dela reconheço em mim. Perdi de vez a inocência quando li Genealogia da moral (sou teimosa, a vida já tinha me dado elementos suficientes para perdê-la, a inocência), leitura que me lançou numa prostração tal de que só consegui me erguer nas sessões de análise (sim, Freud também escreveu sobre o mal-estar na civilização, mas Nietzsche é bem mais impiedoso, nele as tintas da crueldade formam um painel grotesco). Meu Deus, começo falando de inocência e termino às voltas com a violência! Será que nunca mais vai ser possível, a inocência?

sessão nostalgia: Marillion - Kayleigh


A inocência dessa música! 
"Do you remember?" 
Sem contar que ela se presta com perfeição 
para as aulas de Iloveyou da adolescência: 
"So sorry I never meant to break your heart".

domingo, 16 de janeiro de 2011

essa música me faz um bem indescritível (learning to fly - pink floyd)

David Bowie - Something in the Air

um filme (quase) esquecido

Era um rapaz bonito, jovem, inteligente, cheio de disposição para a vida. O filme se passa na Segunda Guerra. Filme polonês? Quem sabe. A sexualidade do rapaz foi entendida pelo regime nazista como uma patologia a ser tratada, e ele foi recolhido a um campo de concentração onde, além de toda a brutalidade do trabalho forçado e debilitante, o rapaz foi submetido a experiências (um verdadeiro assassinato) que lhe causaram lesões cerebrais definitivas. Seu progressivo aniquilamento é a parte mais dolorosa do filme. O rapaz chega a ser resgatado do campo de concentração, mas ele, o rapaz, não existe mais, é apenas um vegetal conduzido pela mão das pessoas. Por sorte o nazismo também deixou de existir.

página 224

Coincidência: no mestrado, na edição que usei de Sagarana para a dissertação, o conto "São Marcos", tema do meu estudo, iniciava na página nº 224. No doutorado, na coletânea de escritos de Sérgio Buarque de que lanço mão, em dois volumes, organizada por Antônio Arnoni Prado, o ensaio "O lado oposto e outros lados", minha porta de entrada para os escritos de crítica literária de Sérgio Buarque e um dos que mais discuto (sem dúvida o escrito mais polêmico e discutido de Sérgio em sua fase modernista, senão seu escrito mais polêmico), inicia na página nº 224. O mundo dá voltas e voltas, apresenta lados opostos e outros lados, mas às vezes surpreende com estranhas recorrências, na falta de termo melhor. Temos a impressão de que as páginas do livro de nossa vida estão avançando, ou que avançamos na leitura do livro de nossa vida (sem dúvida em virtude da noção de progresso impingida ao mundo ocidental pelo estranho conluio entre cristianismo e capitalismo), mas que livro será esse? Terá sido aberto? Quem o estará lendo?