Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 8 de janeiro de 2011

Dream: "Debato-me na gaiola do mundo" (Murilo Mendes)

[também no openfilm]

Murilo Mendes

Beira-mar

Eu consultei o mito,
Interroguei o céu que marcha:

Debato-me na gaiola do mundo
Até que me envolva o futuro.

Luzes ambíguas dançam,
Homens deslocam o busto
E a Esfinge prepara lentamente
O avesso de sua resposta.

Onda que vais, onda que vens,
Dá-me notícias de mim mesmo.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.345-346.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Correvo

[descrição dada para o vídeo: Il bovarismo è una malattia incurabile]

celebridade x revela como perdeu y quilos em z dias

Anônima revela como vem lutando para não emagrecer, pois tem enfrentado problemas que tiram, senão a fome, pelo menos o apetite. 

sonho metafísico (ou quem sabe pós-moderno)

Estou, no sonho, junto com o poeta, em um requintado banquete (um pouco como uma tela de Monet em que todavia só houvesse as personagens e o banquete, à moda de um piquenique, e a natureza tivesse sido furtada, ficando tudo meio lusco-fusco: não, não pode ser Monet), poeta concreto, de carne e osso, no contexto mais concretude que poesia. O banquete é coisa finíssima, mas o poeta, de mansinho, levanta-se e vai, deixando a conta do banquete por minha conta. 

Julio Cortázar

História verídica

Um senhor deixa cair ao chão os óculos, que fazem um barulho terrível ao bater nos ladrilhos. O senhor se abaixa aflitíssimo porque as lentes dos óculos custam muito caro, mas descobre assombrado que por milagre elas não se quebraram.
Agora esse senhor sente-se profundamente grato, e compreende que o acontecimento vale por uma advertência amistosa, de maneira que se dirige a uma ótica e compra logo um estojo de couro acolchoado, com proteção dupla, como precaução. Uma hora depois deixa cair o estojo e ao abaixar-se sem maior preocupação verifica que os óculos viraram farelo. Esse senhor leva tempo para compreender que os desígnios da Providência são insondáveis e que na realidade o milagre aconteceu agora.

CORTÁZAR, Julio. Histórias de cronópios e de famas. Trad. Glória Rodriguez. 12.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.72. 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

citação

"... na quente e segura ilha da minha cama"
(de um conto de Dylan Thomas)

Manuel Bandeira: lagarta listada

NAMORADOS

O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
― Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com a sua cara.
A moça olhou de lado e esperou.

― Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listada?

A moça se lembrava:
― A gente fica olhando...

A meninice brincou de novo nos olhos dela.

O rapaz prosseguiu com muita doçura:

―Antônia, você parece uma lagarta listada.

A moça arregalou os olhos, fez exclamações.

O rapaz concluiu:
― Antônia, você é engraçada! Você parece louca.



BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.142-143. Obs: a variante corrente é "listrada". 

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Fabuloso!


Um dos momentos mais intensos que vivi na docência foi quando um grupo de alunos do Ensino Médio colocou O grito para gritar. Naquela mesma noite O grito se fez ouvir em meus pesadelos (afora outros gritos, quem sabe abafados). 

sonhos

Enquanto voltava da cidade, após mais uma sessão de análise, me dei conta do quanto certos sonhos são premonitórios. A tal ponto que me vejo elaborando questões cruciais em suas imagens. Pois nunca me recordo de diálogos nos sonhos que tenho, são apenas imagens, situações o mais das vezes sem nexo entre si, difíceis mesmo de serem apreendidas pela consciência desperta, mas às vezes de uma clareza absurda. Por exemplo, agora que falo da minha análise, e que estou com uma profissional de orientação diferente. Eu estava sonhando coisas estranhas com minha outra analista: pouco tempo depois eu interrompi o tratamento, da forma mais inesperada possível: levantando-me e indo embora mal tinha iniciado a sessão. Sabia que não iria voltar, como não voltei. Em um dos sonhos ela aparecia numa situação extremamente invasiva, o que, em se tratando da cena e fala psicanalítica, costuma ser problemático. A escuta do profissional precisa ser boa, se não o processo emperra, não anda. Mas o mais curioso foi um ato falho que tive, bem acordada. Tinha acabado de sair de uma sessão, aborrecida com uma fala dela e, logo que saí, pensei, na maior distração, algo assim: preciso levar isso para o meu analista. Ora, isso é uma hipótese que traz em si o absurdo como possibilidade. Leva-se para o analista tudo que se possa imaginar e consentir, mas levar o próprio analista é um pouco mais problemático. Bobagens, basta as que eu falo ao profissional, pagando caro, diga-se. 

Mas...

Sou uma criatura ensimesmada, embora agradável ao convívio. Até os 18 anos, não dava pelas pessoas, me mexia entre elas tão-somente. Mas saí de casa para estudar, e algumas lições se impuseram. A mais forte delas foi que, no mundo, não poderia mais me dar o luxo de não ter convívio social como fazia até então. Algum trânsito seria necessário. E aí deparei-me com uma categoria muito estranha de seres: os vampiros. São seres que se aproximam, ou de que nos aproximamos afetivamente, aproximação em que de repente se insinua a estratégia, como uma arapuca que estava ali o tempo todo e o suposto afeto não deixava ver: dão uma espécie de lambidinha no ego do outro, reconhecendo-lhe os méritos, mas... Mas, inverto eu, o mas aí não é acidental. Todo mundo que passou pela gramática sabe que o que vem depois do mas é o que conta. Mas, ora bolas, digo eu, se a criatura tem reparos sérios à minha pessoa, o que está a fazer ao meu lado? Como veio parar junto a mim? Interessada, naturalmente, no que precede o mas, mas querendo ajeitar o que vem junto, depois, como se paradoxos fossem admissíveis somente no mundo da literatura. Aí eu mesma dou uma mãozinha para a criatura: providencio o afastamento, imediato. Sou hábil nisso. Os primeiros foram mais difíceis, estava aprendendo a técnica, que consiste numa só: não olhar para trás. É desastre certo. A última situação foi um apuro de técnica, meu, claro. Sonhei que a criatura tentava se reaproximar, mas o que tinha a me oferecer era pobre, pouco, traduzido na imagem de roupa de dormir desbotada, comprada em alguma loja barata. Em dois tempos eu etiquetei o sonho: casamento frustrado. E vampiros estão aí, aos montes: querem sua inteligência, sua sagacidade, seu humor, sua alegria, sua saúde, sua independência (pois que lhes falta, muitas vezes). São, como se diz na esteira de Nietzsche, envenenadores da vida, produtores da má-consciência. Eles desejam, justamente por serem pessoas adoecidas,  mutilar o que o outro tem de melhor, talvez para que fiquemos aparentemente parecidos a eles e, como uma aura de empréstimo, alguma coisa nossa migre em sua direção. Não é fácil reconhecer um vampiro, mas eu não hesito na hora de me livrar. 

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

universo onírico

O bizarro post anterior, without wordsvem a propósito dos sonhos. Durante muito tempo, tive dois sonhos recorrentes: ainda na infância, sonhava que tentava fugir de alguma coisa,  ou sair de algum lugar: corria e corria mas sem conseguir me mover, me locomover (aflitivo); num segundo sonho, bastante caro a quem veio de condições sociais pouco favoráveis, já adulta, encontrava-me em situações sociais, públicas, desvestida de sapatos, quer dizer, com os pés nus. No país das havaianas anda-se no máximo com os pés seminus. Pois bem: parei de sonhar que estou em público com os pés constrangedoramente expostos (era o que sentia, vontade de me esconder, enquanto tentava entender, no sonho, como tinha ido parar naquela situação), talvez porque tenha conseguido alguma mobilidade social à custa de estudo e trabalho. De todo modo, herdei dos tempos mais austeros o hábito de ter poucos sapatos. E continuo sonhando.

Without Words

[também no openfilm]

movie-locations.com: viajando através do cinema

Uma reportagem do Uol traz a seguinte chamada: Site traça itinerários de filmes pelo mundo e alavanca o turismo cinéfilo (aqui). Trata-se do site The Worldwide Guide to Movie Locations (http://movie-locations.com/), certamente uma viagem imperdível. O curioso é que viagem e cinema sempre se equacionaram de outra forma na minha imaginação: eu viajo no cinema. Não sei se gostaria de conhecer as locações de Amélie Poulain, por exemplo, mas não dispensaria sentar-me no famoso café. O que fiquei sabendo é que essa transformação, pelo cinema, de determinados locais em atração turística criou justamente as injunções do turismo, o que é diferente do encontro despretensioso e mágico que acontece nas telas. 

atravessando a faixa de pedestres

Atravessando a mesma faixa, a lembrança do mesmo verbo, intuído pelo primeira vez ao atravessar a faixa. A lembrança da intuição do verbo ao quase pisar na faixa, re-signar, intuição que rendeu então um post. Como isso tudo me soa proustiano, e como essas intuições são minha melhor verdade, segue um novo post, à Proust, com minha madeleine um pouco torcida: uma travessia de mulher.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

lembrança de José Régio

Dificilmente um manual escolar de ensino médio não trará o "Cântico negro", de José Régio, junto a alguma coisa de Fernando Pessoa. Todavia, ali bem comportado no manual, encadernado no estilo de época, compelido a ilustrar a moderna poesia portuguesa e lido apressadamente, o poema perde muito de sua verve, força e virulência, seu caráter de encenação de um eu que resiste, contesta e manifesta... um senso raro de liberdade.

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
— Sei que não vou por aí!

Fonte: José Régio: Antologia. Seleção e org. Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.50-51.

John Cage

liberdade

Sinto um cansaço imenso das pessoas que, pouco me conhecendo, para não dizer nada conhecendo, supõem-me decifrada. Ocorre que eu faço viagens por terrenos muito próprios, sempre as fiz. Quem poderá negá-las? Comecei o ano de 2010 com uma crise espiritual que deveria ter resolvido nos confins e recessos de minha persona. Toda vez que tento pensar em Deus alguma coisa engole em falso na minha garganta, mas disso os delegados não dão conta. Durante anos eu me ajoelhei numa igreja para rezar, até não conseguir mais sequer entrar em uma: mas isso não significa aderir a escolhas que não são minhas. Seja lá o que eu for, ou quem quer que eu seja, haja ou não um eu, não é possível prescindir do fato de que há ações em curso pelas quais eu respondo, e que decisões são tomadas o tempo todo. O território delimitado pelo meu corpo é meu, e há uma bandeira fincada nele. 

ouvido na integração do metrô

impermanence / impermanance

Fiquei intrigada com o título do vídeo anterior, que registra a palavra impermanance num enunciado em língua inglesa. O correto seria impermanence. Vou ao Oxford e encontro: impermant / adj. that will not last or stay the same forever. No mesmo verbete há um link para impermanence / noun, substantivo. O filme tem direção de um alemão, Thomas Zachmeier, o que me fez desconfiar de que havia algo de proposital no registro. Mas não sei nada de alemão, então me socorri no google, que me remeteu a um conceito do Budismo (aqui), religião que conheço tanto quanto a língua alemã. Eis o que encontro sobre o diretor: "Thomas Zachmeier, born in Munich, Germany (1969), graduated from the University of Arts (UdK), Berlin. His diploma thesis was a paper on Buddhist philosophy called 'Empty Words'. After (1997) that he moved to Los Angeles and became a film-editor. 2001 he moved back to Germany where he continued editing Films and TV-Shows (e.g. ‘DerAlte’,  ‘Ein Fall für Zwei’). He is Co-founder and creative director of C.A.N. – the Conscious Action Network – a film-project dedicated to tell the stories of change-makers." (aqui). "Empty Words"... gostei.

Contemplate Impermanance (vídeo)

[também no openfilm]

Sérgio Buarque de Holanda e o "homem cordial"

“Eu nunca disse que achava o brasileiro bonzinho. Eu disse cordial, cordial assim: ‘de coração’. Podia até detestar cordialmente. Isso não quer dizer que seja ‘cordiais saudações’. Hoje, eu não usaria essa expressão porque é ambígua e se presta a essas dúvidas. Hoje, usaria outra. Mas não vou renegar o que eu escrevi há 40 anos. Mas nunca disse que o brasileiro é bonzinho. O sujeito pode ser mauzinho e mauzão também.”

Sérgio Buarque de Holanda em entrevista concedida à Folha de S. Paulo em junho de 1977, respondendo às perguntas: “E o mito do homem cordial? Do homem bonzinho!” Trata-se de alusão ao polêmico capítulo de Raízes do Brasil, “O homem cordial”, que assinala, logo de início, as implicações políticas da não separação entre a ordem familiar e a ordem do Estado, prenhe, entre nós, das mais nefastas consequências no âmbito da política, por exemplo no trato com a coisa pública, a própria dificuldade de se constituir, efetivamente, uma esfera pública: “[...] onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a ideia de família ― e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal ― tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições a formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais.”

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.143-144. O trecho da citada entrevista encontra-se em: Encontros: Sérgio Buarque de Holanda. Org. Renato Martins. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p.97.

domingo, 2 de janeiro de 2011

like a rolling stone - bob dylan

Quando a tarefa é punk, o som precisa acompanhar, como um estímulo para o organismo não esmorecer. Então eu ouço, ouço, ouço... ouço Bob Dylan sem parar... Vou rolando palavras umas sobre as outras, vou fazendo palavras rolarem sobre o texto, desenrolando o novelo de uma escritura que ultrapassa minhas forças. Pedras que rolam acionam a metonímia, remetendo ao movimento inerente a toda escrita, à própria vida.

All Along the Watchtower (Dave Matthews Band cover Bob Dylan)

aos que sentem dor...

Súbito, um pensamento nos que, agora, estão sentindo dor...

Humor, arte e liberdade: acerca de uma passagem de Schiller

É essencial não perder o humor, a ser negociado com a força da intempérie. Mas será que o grau da intempérie não pode ser tal que justamente chegue a obliterar qualquer possibilidade humor? Penso que sim, mas não consigo deixar de achar interessante o raciocínio desenvolvido a propósito de Schiller por Rüdiger Safranski, em Romantismo: uma questão alemã (título da tradução brasileira), no contexto de um debate sobre arte e liberdade em que o poeta estaria frisando a necessidade de "criar os fundamentos espirituais sobre os quais se pode futuramente criar o Estado livre" ― algo, de passagem, negado de todas as formas em O banqueiro anarquista, pois o próprio Estado é uma das ficções sociais apontadas pelo narrador de Fernando Pessoa. Caminho na contracorrente, portanto, não sei se olhando em demasia para trás.

"Não se pode primeiro querer destruir o mecanismo do Estado e em seguida querer inventar um novo; tem-se, pelo contrário, de trocar a roda enquanto em movimento. Mas por que essa troca da roda em movimento ― essa revolução na maneira de pensar ― poderia ser gerada exatamente pela arte e pelo trato com ela?” ― pergunta-se Safranski,  afirmando em seguida: “Porque é através da beleza que se chega à liberdade. Pode-se certamente dizer ― e Schiller o faz ― que a bela arte educa e aprimora os sentimentos. Essa seria sua contribuição à civilização. Mas ele não se dá por satisfeito com isso. O mundo estético não é apenas um campo de exercício para o refinamento e enobrecimento dos sentimentos, mas o lugar onde o homem se torna explicitamente aquilo que ele é implicitamente: um homo ludens.” Continua num próximo post.


Referência: SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. Trad. Rita Rios. São Paulo: Estação Liberdade, 2010, p.42-43, destaques do autor.

um pouco de humor

Young Loves: Rotten Fruit (ilustrando post)

oceano da praia do meu desejo (de um verso de Manuel Bandeira)

O dia de ontem, todos sabem, foi aclamado como histórico no Brasil: pela primeira vez, depois de inaugurada a República (cuja condução, ao longo de seu século e pouco, teve mais de latino-americano que de americano ― somos americanos, apesar de tudo, por pertencimento a um continente batizado de América, situado entre os oceanos Pacífico e Atlântico), uma mulher foi empossada como presidente após ter sido escolhida por maioria nas urnas. Era feriado, 1º de janeiro, Dia da Confraternização Mundial. Um dia em tese de descanso, a perder de vista, apesar das diferenças de fuso horário. Por aqui, o descanso foi mesmo só em tese ― teses por terminar não costumam dar descanso. E eu me perguntava, lá pelas tantas, com a cabeça esgotada, que obstinação é essa que não deixa uma pessoa largar o serviço mesmo num dia em que poderia, em tese, fazê-lo. Muitas outras pessoas trabalharam ontem, há categorias profissionais e serviços que não podem parar. E aí já tenho a resposta, que me traz junto um sentimento curioso de solidariedade. Mas uma estranha calma me vem ao me dar conta da privilegiada localização geográfica do meu continente: entre o Atlântico e o Pacífico. O primeiro eu posso conferir a hora que quiser. O segundo está aqui, incorporado como fuso horário e algo mais deste espaço, para que eu não me esqueça, nunca, de duas coisas, pelo menos: meu absurdo desejo de paz, paz íntima, pessoal, que de forma alguma se confunde com ausência de conflitos; a relatividade de quase tudo nesse mundo (pois há algo de tirânico no que é absoluto, e tiranias dão pouco espaço ao que é relativo). Vejo o Atlântico, imagino o Pacífico: oceanos da praia do meu desejo. Se há uma coisa que devo a esta tese e a Sérgio Buarque de Holanda, do muito que aprendi e tenho por aprender, foi a conquista da poesia, América esquiva até então às minhas investidas de leitura, poesia de que Sérgio Buarque foi leitor privilegiadíssimo, um dos melhores que esse país já teve, sem dúvida, e um dos mais atentos e cuidadosos da poesia de Manuel Bandeira, desde a primeira hora modernista.

Oceano

Olho a praia. A treva é densa.
Ulula o mar, que não vejo,
Naquela voz sem consolo,
Naquela tristeza imensa
Que há na voz do meu desejo.

E nesse tom sem consolo
Ouço a voz do meu destino:
Má sina que desconheço,
Vem vindo desde eu menino,
Cresce quanto em anos cresço.

Voz de oceano que não vejo
Da praia do meu desejo...

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 64-65.