Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 18 de dezembro de 2010

Encontrar hoje essa música de que já gostei tanto me fez muito bem

um tratado do efêmero: o TopTop MTV de 18/12/2009

Vou assistir um pouco de televisão neste sábado à tarde que me solicita uma pausa enquanto me aguardam coisas mais sérias, e sou brindada, no zapping dos canais, com uma pérola do TopTop MTV, um tratado sobre o efêmero: o pop dos anos 80 que não ultrapassou a barreira da década, digo, do som, por n razões. Há um ranking, em que são elencados, do 10 ao 1º lugar, bandas e cantores que pontificaram, tiveram sua glória nos anos 80, mas lá ficaram em sua maioria, não sobrevivendo ao próprio sucesso. Como discordei do ranking do ostracismo (se assim se pode chamá-lo), que me pareceu meio aleatório, propus meu próprio. O fato é que o programa, além de me distrair, me fez pensar na questão da efemeridade, que é de sempre, de todas as épocas. Como gosto muito dos 80, pois coincidiu com a minha adolescência (e certa inocência, creio que minha e da década), vou dispor as escolhas conforme minha predileção. Para quem quiser conferir o ranking do programa, é só assistir a reprise, ou acessar o site, quando eles disponibilizarem. Em tempo: o TopTop MTV é um programa semanal elencando as mais diversas bizarrices do universo da música... que toca na MTV!

1. Cyndi Lauper: a cara do pop anos 80 - Girls Just Want To Have Fun (aqui). Mas também gostava dessa:


2. A-ha: os pops internacionais mais brazucas da década, segundo a dupla de apresentadores: teriam feito mais sucesso no Brasil que em qualquer outra parte do mundo. Gostava de várias, esta era bem bonitinha:


3. Duran Duran: a dupla de apresentadores viajou. O Duran Duran não é só o uso que eles fizeram da MTV ou o sucesso da canção que virou tema de uma das sequências de 007. Como já postei três sucessos da banda no blog, vou nessa, que gosto de ouvir (aliás, feeling foi o que faltou na seleção e no ranking):


4. Culture Club: era fraquinho mesmo.


5. Já que era para falar do Brasil, e se o assunto era o pop, onde foi parar a Blitz? Citar apenas Metrô e Leo Jaime é coisa de desmemoriado total: Você não soube me amar simplesmente estourou, para, claro, junto com a ingenuidade da época, ser tragada por ela:


6. Francamente, os demais ícones listados não me agradaram ou mesmo pouco me disseram respeito, prefiro mesmo esquecer. De forma que acho que essas escolhas são mais afetivas que qualquer outra coisa, e eu me diverti muito ouvindo essas musiquinhas mais ou menos esquecidas que embalaram minha adolescência e juventude. Então, vai aí minha sessão matinê, garimpada no TopTop da MTV. 

O homem que copiava (Jorge Furtado, 2003)

O homem que copiava é um filme sobre impossiblidades. Antes, um filme sobre o que é verossímil quando o assunto é ficção. Os sonetos de Shakespeare não são gratuitos, como nada é gratuito neste filme que é o melhor, talvez o único filme de fato, excetuando-se o excelente curta Ilha das Flores (aqui), do diretor Jorge Furtado. Não há sinopse ou resenha que dê conta de O homem que copiava, pois o que está em jogo não é a história em si, é o narrar, como criar e tornar verossímeis personagens e situações. Talvez Jorge Furtado tenha lido algo da teoria da causalidade de Jorge Luis Borges na narrativa romanesca. É um filme para se assistir pelo prazer da narrativa. E como nada é casual no filme, aparece no final uma misteriosa galinha, numa excelente sacada do diretor. Na revista Contracampo (aqui) há um depoimento sobre o filme, atribuído ao diretor. Mas o melhor talvez seja não conferir e ir direto ao filme, tentar decifrar seu enigma, o enigma da galinha, os enigmas de André (Lázaro Ramos) e Sílvia (Leandra Leal), contrabalançados pelas armações de Marinês (Luana Piovani) e Cardoso (Pedro Cardoso). Todos em atuações impecáveis e cheias de humor. 

ressaca do sumiço do blog

É claro que o sumiço repentino do meu blog trouxe-me uma estranha ressaca e é claro que emprego o termo no seu sentido forte: forte movimento das ondas sobre si mesmas, resultante de mar muito agitado, quando se chocam contra obstáculos no litoral. O mar em mim se agitou, a escrita tumultou-se, pôs-se a repensar-se, não querendo represar-se. Não sei o que houve para que o blog tenha sido marcado, como o de muitas outras pessoas, e na mesma ocasião, conforme pude averiguar, como “spam”. O curioso é o que veio depois, trazido pela vaga da ressaca: mecanismos de busca com essas combinações: http://thmari.blogspot.com/; “mar à vista da ilha blog”, “mar á vista blog”, “blog mar à vista”, “mar à vista da ilha”.

O que sei é que sou politizada o suficiente para sobreviver, mas, conforme afirmei em comentário num post de outro blog acerca da ingenuidade (aqui), ela é meu calcanhar de Aquiles, e quase sempre é nociva. Sinto que ela me traz coisas boas, como uma espécie de convívio espirituoso com as pessoas. Por alguma razão que me escapa completamente, sou agradável, sem precisar tentar sê-lo. Por outro lado, passo um atestado de incompetência enorme quando o assunto é vida, o que me torna uma esquiva, ou arisca, conforme já ouvi certa feita. Pois simplesmente tenho o tempo todo consciência da minha ingenuidade. Intuo bastidores, intuo muita coisa. 

Já vivi situações que me mostraram com quantas máscaras se faz uma imagem. Por exemplo, agora em que o caso Bruno volta a público, pois será levado a júri popular. Na época, o que escandalizou a todos ― e não houve ninguém no Brasil que não comentasse ― foi a proporção de tudo, o quanto o ser humano pode ser pior que tudo o que se pode imaginar dele. Até hoje o corpo não foi encontrado, e a descrição do crime que veio a público, dada por um adolescente que depois voltou atrás em seu depoimento, não se sabe bem por que, era de uma atrocidade feroz. Quer dizer: havia algo de intolerável em admitir que alguém pudesse matar e, para ocultar o cadáver, desossasse-o, desse-o como comida aos cachorros e depois cimentasse os ossos. Foi uma espécie de choque coletivo, essa versão. Nem o Allan Pöe em suas fantasmagorias conceberia algo tão escabroso, porque nele se tratava dos desvãos do psiquismo humano, enquanto no caso do crime em tela há algo da ordem do animal muito forte falando. Nenhum dos crimes que li em Rubem Fonseca chegou a esse grau de degradação, talvez porque o que estivesse em jogo era tanto o crime quanto a elegância em cometê-lo, ou desvendá-lo. Enfim, não faltam criminosos notáveis na literatura, mas há neles, talvez por que seja literatura, algo que os redima ante o leitor. Falo do que li, evidentemente. Paulo Honório era um assassino, Riobaldo um jagunço com mira excelente, Bentinho teve ganas de matar o próprio filho. Esqueci algum? Vários. Lady Macbeth, Raskolnikóv, Édipo. A galeria é imensa. 

De forma que seria muito interessante tentar penetrar nos labirintos desses crimes "reais". Fazê-lo seria, de certa forma, entender melhor o que nos espreita quando o frágil verniz da cultura cede lugar a outras forças. Mas creio que divago, enredo-me em labirintos também. O que queria dizer é só isso: na minha ingenuidade, não entendi o sumiço repentino do meu blog. Mas prefiro não entender: quero apenas continuar acreditando que posso me mexer com o quinhão de liberdade que consigo me permitir. Ou que me concedem. 

uma visão esplendorosa

Basta clicar na imagem para entrar. Sugestão do site do Millôr

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

enciclopédia itaú cultural de artes visuais: Iberê Camargo

Núcleo, 1965

enciclopédia itaú cultural de artes visuais: Iberê Camargo

Figura, 1965

enciclopédia itaú cultural de artes visuais: Iberê Camargo

O grito, 1984

Mário Faustino: "Entorne-se o mel do tempo: sim, silêncio"

...

Entorne-se o mel do tempo:
sim, silêncio ―
cale-se o marimbondo em seu cortiço:
duro, é duro ―
amanhece e o mundo zumbe, zumbe e zomba
quando não se enfurece com teu grito
pedido de silêncio
ou de suspensão
da pena de estar vivo.
Vivo e oco
vivo e não vivo, ator,
mentiras sussurrando à brisa, Midas.
Corte sem viço: tampa
de nada sobre o vazio povoado
de fontes, parras, nojos ―
tal a morte ―

...

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.102.

prefiro esse... tem algo de bíblico... quem sabe depois de três dias?

dois cartuns e algumas ironias

Samuca, Diário de Pernambuco, 04/04/2009

O contexto remete às fortes enchentes que atingiram vários estados do Brasil entre 2008-2009, com consequências gravíssimas, atrelado à fala do presidente Lula de que no Brasil a crise internacional teria chegado enfraquecida, como uma marolinha. O detalhe fica por conta da inusitada interpretação dada por uma aluna do Ensino Médio ao termo. Certamente o noticiário não era sua onda preferida.

Angeli, Folha de S. Paulo, 31/03/2009 

Esta fala por si. 

Erik Satie - Gymnopédie nº 1

Emily Dickinson

O Perder Tudo ― me livrou
De perder Ninharias ―
Se nada maior do que um Mundo
Quebrar as Dobradiças
Ou extinguir-se o Sol ― se vê ―
Nada foi tão notável
Que do Trabalho me excluísse
Por Curiosidade.


The Missing All ― prevented Me
From missing minor Things ―
If nothing larger than a World’s
Departure from a Hinge ―
Or Sun’s extinction ― be observed ―
‘Twas not so large that I
Could lift my Forehead from my work
For Curiosity.

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.56-57.

o aprendizado da escrita

Fundamentalmente, eu aprendi a escrever com duas pessoas: Sérgio Buarque de Holanda e Clarice Lispector. Se ele foi crítico e historiador e ela simplesmente escritora, portanto com pouquíssimas, em tese, possibilidades de intersecções (não obstante Sérgio Buarque tenha dedicado a Clarice um belo escrito, numa época em que quase ninguém falava dela), entretanto há nos dois a mesma coragem de se colocar no texto, na escrita, a mesma força unindo escrita e vida. A mesma força atravessando texto e vida. Certamente não foi na escrita controlada da redação escolar que aprendi a escrever: quando muito, aprendi a fazer bons textos, ainda que falaciosos. Nunca me esqueço o tema de redação do primeiro vestibular que prestei. Era na época da Constituinte, de forma que foi solicitado aos candidatos discorrer sobre o tema "Nação e Constituição". Devo ter mentido bem, pois a nota foi boa, e passei com folga. Continuei mentindo nas redações que fiz para outros vestibulares. E aprendi, quando me tornei professora da tal disciplina (redação), como os textos dos alunos/candidatos mentem, no sentido de dizer coisas em que não acreditam para obter uma boa nota. Nesse sentido, há um depoimento que considero fundamental, de Alcir Pécora, crítico literário que já militou no estudo do fenômeno "redação" no vestibular: "Na verdade, tratava-se de uma reprodução, da entrega de cada um ao mesmo passado ― de ninguém: reproduziam alguns poucos modelos, oficialescos e consagrados, com variações transparentes. Nesse caso, o erro mais grave, o problema maior, não estava na dificuldade de assimilação de algumas normas e exceções do português padrão, mas, justamente, na excessiva facilidade em se assimilar um padrão de linguagem, portanto, um padrão de referência para pensar e interpretar o mundo, para constituir a própria experiência. Pessoas vindas dos lugares mais distantes entre si, de situações econômicas não tão distantes assim, chegavam para o vestibular na hora marcada, tomavam o lápis e folha, e escreviam o esboço de um testamento em favor de uma mesma cartilha." (PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.15.) 

É claro que sempre poderá aparecer alguém e questionar o pressuposto básico desse texto: Mas Mariana, você acha mesmo que sabe escrever? Eu não disse que sabia, disse com quem aprendi algo que vou tateando. Retomando o conto de Clarice Lispector aqui postado, escrever é desobedecer.

Gottfried Benn: “Problemas da lírica” (excertos)

“A nova poesia ― a lírica ― é um produto artístico que envolve uma característica de cumplicidade, de controle crítico e ― para usar uma expressão perigosa ― o conceito do artístico. Na composição de uma poesia, não consideramos apenas a poesia, mas também o seu autor. Neste sentido é particularmente significativa a posição de Valéry, para quem a contemporaneidade do fato poético com aquele crítico-introspectivo atinge o seu limite onde os dois lados se interpenetram e se fundem. Aliás, ele afirma: ‘Por que não devemos começar a considerar como obra de arte a própria construção da obra de arte?’ Neste ponto nos defrontamos com uma particularidade significativa do atual Eu lírico. Na literatura moderna encontramos diversos exemplos de poderes que se equivalem num determinado autor, das suas qualidades líricas e ensaísticas. [...] Os líricos modernos nos apresentam uma filosofia da composição e uma sistemática da criação.”

BENN, Gottfried. Problemas da lírica. Trad. Fábio Weintraub. Rio de Janeiro, Cadernos Rioarte, Ano I, n.3, p.4-11, 1985. Conferência proferida em 1951. 

O ESPÍRITO DA COLMEIA (Victor Erice, 1973)


O espírito da colmeia é um filme bastante difícil, a que assisti num espaço alternativo em BH, o Centro Cultural de Belo Horizonte. Como sempre, dada a minha dificuldade de falar de certos filmes, remeto o leitor a comentários mais consistentes (aqui, aqui, aqui, aqui...). Me ficou do filme a atmosfera de medo envolvendo tudo, inclusive o espectador, as fantasias que movem a menina Ana assustadoramente em direção ao monstro Frankenstein, a atmosfera de sonho e solidão que pauta aquelas vidas, o final nebuloso, como se fosse um sonho. Tudo é muito nebuloso do que retive. Quando a menina finalmente encontra o monstro eu não suportei a cena e fechei os olhos. Não sei o que aconteceu. Talvez só assistindo novamente para ter uma dimensão menos assustada, "racional" e traduzível do filme, até onde isso for possível. Mas sempre lembrando que um filme é também o que dele nos atravessa. Não suportar uma cena é ser atravessado de alguma forma. Como os melhores filmes de minha vida eu assisti em Belo Horizonte, uma cidade especialmente devotada ao cinema, segue uma lembrança do espaço que me propiciou o contato com essa obra-prima. 

Imagem obtida aqui.

sonhando com o blog

Enquanto durante o dia me angustiam questões as mais díspares, das existenciais à própria escrita, do que for (da tese, deste espaço sobremaneira), à noite sonho com mais um texto de post, inteirinho, buscando forma de expressão. Naturalmente não me lembro de nada do conteúdo do texto, apenas de sua enunciação, entre idas e vindas. Se estiver certa minha analista lacaniana, os sonhos são meus e eu faço (e falo) o que quiser com eles. Então o único remédio, me parece, é escrever. Enquanto escrevo, vou me lembrando que sonhei mais coisas, envolvendo questões da hora, mas recebo apenas flashes de minha memória. É corrente ouvir-se que de tudo que sonhamos, apenas o último sonho fica retido com "clareza". Verdade ou não, é o que se passa comigo, embora eu já tenha conseguido recuperar mais de um. Eu sonho toda noite, e possivelmente toda a noite, quer dizer, a noite inteira. Mas, nesta noite, mais uma vez, só fiquei com o último, que talvez condense os demais. Pelos últimos dias, andei angustiadíssima com a escrita (certamente porque estou a concluir a tese, e as questões que estou tentando elaborar não são nada fáceis), angústia que repercutiu no blog, pois nele dava vazão, e fiz isso durante toda a tese, à tensão que me atravessava. Paradoxalmente, foi o blog que me trouxe a consciência da escrita que tenho hoje. Nele melhorei a própria sintaxe, depurei certos cacoetes de escrita, enfim, encontrei algo que poderia ser chamado de estilo se essa palavra já não fosse convocada para coisas demais. Encontrei um modo próprio de me enunciar, uma coragem, "um jeito". Encontrei algo de meu, em síntese, mas não no sentido usual do pronome implícito no possessivo. E possivelmente o sonho foi isso: a escrita que se tateia, envolvendo uma persona cujo perfil mais típico é a inquietação. Nisso entram os flashes dos outros sonhos, pois que me trazem situações da vida, retalhos que não fazem um colcha. Entre escrita e vida o que existe é que a escrita muda nosso modo de ver a vida, e que mudanças sofridas na vida alteram profundamente a escrita. Um dos interlocutores mais importantes que tive esse ano, do mundo "real", é um colega da filosofia, cujos diálogos, embora eu não concordasse com muita coisa (além das que simplesmente não entendia), tiveram sobre mim efeito similar ao fogo descrito por Fernando Pessoa na sua teoria dos quatro elementos. O primeiro desses diálogos foi absolutamente casual, num trem da supervia. Então esse colega (que veio a se tornar amigo, pela intensidade mesma da interlocução), falou uma coisa muito interessante: que o principal da conversa não tinha sido sua continuidade num fio perfeitamente discernível, mas que os ruídos do trem criavam pausas, interrupções na audição, e entre os ruídos e pausas alguma coisa ia passando. Quer dizer: é entre os ruídos que alguma coisa é dita, passa, afeta, chega ao outro. Num congresso de teoria, me recordo bem de uma fala dizendo que os sonhos são os restos da noite ― entremeados a ruídos, acrescento. Nossos restos da noite têm sempre algo a dizer, embora os ruídos deixem ouvir apenas os restos de algo que deve ter se passado numa cenografia maravilhosa. Ouvi esta noite que a escrita tornou-se inalienável da minha vida.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

o público de cinema no Brasil: um depoimento contundente


Não só os adolescentes, e não só nas salas de cinema de shoppings centers. Já desisti de me irritar com os que conversam abertamente durante a sessão. Quando residia em BH, e ia mais assiduamente ao cinema, pagava para me irritar. Tudo bem que as pessoas conversem em salas de shoppings, elas via de regra estão lá a passeio mesmo. Isso não impediu que, certa feita, eu me levantasse e fosse reclamar, no meio da sessão do filme "Sangue Negro", de um grupo de adolescentes que não parava de falar e fazer guerrinha de pipoca. Como diz o vídeo, escolheram qualquer filme ao acaso, e era óbvio que tinham errado de filme. Reclamei meu ingresso, o funcionário fez a contraproposta de apacentar os irrequietos garotos. Mas também em salas supostamente cult as pessoas conversavam, discutiam o filme todinho durante a sessão. Se fosse algum Woody Allen ou mesmo Almodóvar, então era de fato impossível conseguir silêncio. De forma que, pelo menos em BH, chegou a virar matéria de jornal a falta de educação das pessoas (não há outro termo) nas sessões de cinema, mas o fenômeno é generalizado. Agora desisti de reclamar. Quando vou ao cinema, sento-me o mais longe possível de onde as pessoas ficam concentradas. Conforme for o caso, é mais vantajoso esperar sair em DVD e assistir em casa.

Os obedientes - Clarice Lispector

Interessa-me postar este conto por duas particularidades: o imbricamento entre forma e fundo, entre o que se diz e a consciência em relação ao que é dito; a própria noção de obediência que o conto encena. Propositalmente, trechos que julgo relevantes vão em destaque (itálico). Emprego negrito quando o destaque for da autora, e as aspas são dela própria:

Os obedientes
Clarice Lispector

Trata-se de uma situação simples, um fato a contar e esquecer.
Mas se alguém comete a imprudência de parar um instante a mais do que deveria, um pé afunda dentro e fica-se comprometido. Desde esse instante em que também nós nos arriscamos, já não se trata mais de um fato a contar, começam a faltar as palavras que não o trairiam. A essa altura, afundados demais, o fato deixou de ser um fato para se tornar apenas a sua difusa repercussão. Que, se for retardada demais, vem um dia explodir como nesta tarde de domingo, quando há semanas não chove e quando, como hoje, a beleza ressecada persiste embora em beleza. Diante da qual assumo uma gravidade como diante de um túmulo. A essa altura, por onde anda o fato inicial? ele se tornou esta tarde. Sem saber como lidar com ela, hesito em ser agressiva ou recolher-me um pouco ferida. O fato inicial está suspenso na poeira ensolarada deste domingo ― até que me chamam ao telefone e num salto vou lamber grata a mão de quem me ama e me liberta.
Cronologicamente a situação era a seguinte: um homem e uma mulher estavam casados.
Já em constatar este fato, meu pé afundou dentro. Fui obrigada a pensar em alguma coisa. Mesmo que eu nada mais dissesse, e encerrasse a história com esta constatação, já me teria comprometido com os meus mais desconhecíveis pensamentos. Já seria como se eu tivesse visto, risco negro sobre fundo branco, um homem e uma mulher. E nesse fundo branco meus olhos se fixariam já tendo bastante o que ver, pois toda palavra tem a sua sombra.
Esse homem e essa mulher começaram ― sem nenhum objetivo de ir longe demais, e não se sabe levados por que necessidade que pessoas têm ― começaram a tentar viver mais intensamente. À procura do destino que nos precede? e ao qual o instinto quer nos levar? instinto?!
A tentativa de viver mais intensamente levou-os, por sua vez, numa espécie de constante verificação de receita e despesa, a tentar pesar o que era e o que não era importante. Isso eles o faziam a modo deles: com falta de jeito e de experiência, com modéstia. Eles tateavam. Num vício por ambos descoberto tarde demais na vida, cada qual pelo seu lado tentava continuamente distinguir o que era do que não era essencial, isto é, eles nunca usariam a palavra essencial, que não pertencia a seu ambiente. Mas de nada adiantava o vago esforço quase constrangido que faziam: a trama lhes escapava diariamente. Só, por exemplo, olhando para o dia passado é que tinham a impressão de ter ― de algum modo e por assim dizer à revelia deles, e por isso sem mérito ― a impressão de ter vivido. Mas então era de noite, eles calçavam os chinelos e era de noite.
Isso tudo não chegava a formar uma situação para o casal. Quer dizer, algo que cada um pudesse contar mesmo a si próprio na hora em que cada um se virava na cama para um lado e, por um segundo antes de dormir, ficava de olhos abertos. E pessoas precisam tanto poder contar a história delas mesmas. Eles não tinham o que contar. Com um suspiro de conforto, fechavam os olhos e dormiam agitados. E quando faziam o balanço de suas vidas, nem ao menos podiam nele incluir essa tentativa de viver mais intensamente, e descontá-la, como em imposto de renda. Balanço que pouco a pouco começavam a fazer com maior frequência, mesmo sem o equipamento técnico de uma terminologia adequada a pensamentos. Se se tratava de uma situação, não chegava a ser uma situação de que viver ostensivamente.
Mas não era apenas assim que sucedia. Na verdade também estavam calmos porque "não conduzir", "não inventar", "não errar" lhes era, muito mais que um hábito, um ponto de honra assumido tacitamente. Eles nunca se lembrariam de desobedecer.
Tinham a compenetração briosa que lhes viera da consciência nobre de serem duas pessoas entre milhões iguais. "Ser um igual" fora o papel que lhes coubera, e a tarefa a eles entregue. Os dois, condecorados, graves, correspondiam grata e civicamente à confiança que os iguais haviam depositado neles. Pertenciam a uma casta. O papel que cumpriam, com certa emoção e com dignidade, era o de pessoas anônimas, o de filhos de Deus, como num clube de pessoas.
Talvez apenas devido à passagem insistente do tempo tudo isso começara, porém, a se tornar diário, diário, diário. Às vezes arfante. (Tanto o homem como a mulher já tinham iniciado a idade crítica.) Eles abriam as janelas e diziam que fazia muito calor. Sem que vivessem propriamente no tédio, era como se nunca lhes mandassem notícias. O tédio, aliás, fazia parte de uma vida de sentimentos honestos.
Mas, enfim, como isso tudo não lhes era compreensível, e achava-se muitos e muitos pontos acima deles, e se fosse expresso em palavras eles não o reconheceriam ― tudo isso, reunido e considerado já como passado, assemelhava-se à vida irremediável. À qual eles se submetiam com um silêncio de multidão e com o ar um pouco magoado que têm os homens de boa-vontade. Assemelhava-se à vida irremediável para a qual Deus nos quis.
Vida irremediável, mas não concreta. Na verdade era uma vida de sonho. Às vezes, quando falavam de alguém excêntrico, diziam com a benevolência que uma classe tem por outra: "Ah, esse leva uma vida de poeta". Pode-se talvez dizer, aproveitando as poucas palavras que se conheceram do casal, pode-se dizer que ambos levavam, menos a extravagância, uma vida de mau poeta: vida de sonho.
Não, não é verdade. Não era uma vida de sonho, pois este jamais os orientara. Mas de irrealidade. Embora houvesse momentos em que de repente, por um motivo ou por outro, eles afundassem na realidade. E então lhes parecia ter tocado num fundo de onde ninguém pode passar.
Como, por exemplo, quando o marido voltava para casa mais cedo do que de hábito e a esposa ainda não havia regressado de alguma compra ou visita. Para o marido interrompia-se então uma corrente. Ele se sentava cuidadoso para ler o jornal, dentro de um silêncio tão calado que mesmo uma pessoa morta ao lado quebraria. Ele fingindo com severa honestidade uma atenção minuciosa ao jornal, os ouvidos atentos. Nesse momento é que o marido tocava no fundo com pés surpreendidos. Não poderia permanecer muito tempo assim, sem risco de afogar-se, pois tocar no fundo também significa ter a água acima da cabeça. Eram assim os seus momentos concretos. O que fazia com que ele, lógico e sensato, se safasse depressa. Safava-se depressa, embora curiosamente a contragosto, pois a ausência da esposa era uma tal promessa de prazer perigoso que ele experimentava o que seria a desobediência. Safava-se a contragosto mas sem discutir, obedecendo ao que dele esperavam. Não era um desertor que traísse a confiança dos outros. Além do mais, se esta é que era a realidade, não havia como viver nela ou dela.
A esposa, esta tocava na realidade com mais frequência, pois tinha mais lazer e menos ao que chamar de fatos, assim como colegas de trabalho, ônibus cheio, palavras administrativas. Sentava-se para emendar roupa, e pouco a pouco vinha vindo a realidade. Era intolerável enquanto durava a sensação de estar sentada a emendar roupa. O modo súbito do ponto cair no i, essa maneira de caber inteiramente no que existia e de tudo ficar tão nitidamente aquilo mesmo ― era intolerável. Mas, quando passava, era como se a esposa tivesse bebido de um futuro possível. Aos poucos o futuro dessa mulher passou a se tornar algo que ela trazia para o presente, alguma coisa meditativa e secreta.
Era surpreendente de como os dois não eram tocados, por exemplo, pela política, pela mudança de governo, pela evolução de um modo geral, embora também falassem às vezes a respeito, como todo o mundo. Na verdade eram pessoas tão reservadas que se surpreenderiam, lisonjeadas, se alguma vez lhes dissessem que eram reservadas. Nunca lhes ocorreria que se chamava assim. Talvez entendessem mais se lhes dissessem: "vocês simbolizam a nossa reserva militar". Deles alguns conhecidos disseram, depois que tudo sucedeu: eram boa gente. E nada mais havia a dizer, pois que o eram.
Nada mais havia a dizer. Faltava-lhes o peso de um erro grave, que tantas vezes é o que abre por acaso uma portaAlguma vez eles tinham levado muito a sério alguma coisa. Eles eram obedientes.
Também não apenas por submissão: como num soneto, era obediência por amor à simetria. A simetria lhes era a arte possível.
Como foi que cada um deles chegou à conclusão de que, sozinho, sem o outro, viveria mais ― seria caminho longo para se reconstruir, e de inútil trabalho, pois de vários cantos muitos já chegaram ao mesmo ponto.
A esposa, sob a fantasia contínua, não só chegou temerariamente a essa conclusão como esta transformou sua vida em mais alargada e perplexa, em mais rica, e até supersticiosa. Cada coisa parecia o sinal de outra coisa, tudo era simbólico, e mesmo um pouco espírita dentro do que o catolicismo permitiria. Não só ela passou temerariamente a isso como ― provocada exclusivamente pelo fato de ser mulher ― passou a pensar que um outro homem a salvaria. O que não chegava a ser um absurdo. Ela sabia que não era. Ter meia razão a confundia, mergulhava-a em meditação.
O marido, influenciado pelo ambiente de masculinidade aflita em que vivia, e pela sua própria, que era tímida mas efetiva, começou a pensar que muitas aventuras amorosas seriam a vida.
Sonhadores, eles passaram a sofrer sonhadores, era heróico suportar. Calados quanto ao entrevisto por cada um, discordando quanto à hora mais conveniente de jantar, um servindo de sacrifício para o outro, amor é sacrifício.
Assim chegamos ao dia em que, há muito tragada pelo sonho, a mulher, tendo dado uma mordida numa maçã, sentiu quebrar-se um dente da frente. Com a maçã ainda na mão e olhando-se perto demais no espelho do banheiro ― e deste modo perdendo de todo a perspectiva ― viu uma cara pálida, de meia-idade, com um dente quebrado, e os próprios olhos... tocando o fundo, e com a água já pelo pescoço, com cinquenta e tantos anos, sem um bilhete, em vez de ir ao dentista, jogou-se pela janela do apartamento, pessoa pela qual tanta gratidão se poderia sentir, reserva militar e sustentáculo de nossa desobediência.
Quanto a ele, uma vez seco o leito do rio e sem nenhuma água que o afogasse, ele andava sobre o fundo sem olhar para o chão, expedito como se usasse bengala. Seco inesperadamente o leito do rio, andava perplexo e sem perigo sobre o fundo com uma lepidez de quem vai cair de bruços mais adiante.

LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.81-87. Este conto, se assim se pode chamá-lo, foi publicado originalmente no Jornal de Brasil (portanto encontra-se também em A descoberta do mundo), em duas partes, respectivamente 2 e 9 de dezembro de 1972, mas passou por modificações antes de ser incorporado ao livro Felicidade clandestina.

escrita, rigor, necessidade e outras contingências

Antes mesmo de começar a escrever, mas já com a ideia e o título em mente, tropeço neste post falando de algo similar (e de forma bem mais concisa), a questão de uma auto-censura à escrita. Então cito, além da coincidência, para não parecer plágio de ideias: a césar o que lhe pertence. Feita essa ponderação, começo por dizer que falei da questão, a minha, a um amigo, no sentido de que de repente estava renegando textos já escritos e postados, e que isso eu atribuía a um excesso de rigor de minha parte quanto ao que escrevo. Ele me disse coisas que considero pertinentes, considerando os dois lados, de quem escreve e de quem lê: "Penso que as duas coisas movimentem nossa preocupação com a escrita: um rigor por parte de quem escreve [...] e preocupação com o leitor (mesmo que ninguém leia o que escrevemos sempre que, movidos pela necessidade da escrita, traçamos linhas é porque temos algo interessante a dizer)." Nesta segunda parte, me parece, está o essencial. Garantida a qualidade da escrita (que pode ser sempre questionável), é importante reconhecer que a preocupação com o leitor pode ser um fator limitante. De fato, a compulsão que sinto por escrever é tal que submetê-la a um controle excessivo, além daquele que já exerço (e vale relembrar o trecho do Graciliano Ramos aqui postado) é torturante, de forma que ou obedeço ao impulso quando ele se impõe e escrevo (mesmo que fique amassando o texto por dias num rascunho), ou desisto e fecho o blog. Se traço linhas é porque julgo ter algo interessante a dizer, ainda que seja a mim mesma. E é melhor postar antes que fique pensando muito e acabe por desistir. As ditas celebridades, no Brasil, publicam com extrema facilidade, as portas das grandes editoras estão lhes sempre abertas. Enquanto isso, minha dissertação de mestrado, tratando tema original, está aqui guardada, pois julgo que sem uma revisão ela não é publicável (se é que vou encontrar editora com boa vontade para tanto, sem pagar do próprio bolso). Os meus melhores textos foram aqueles em que obedeci, a fundo, minha necessidade de escrever. O melhor, para mim, ainda é o Edital de Incineração. Foi a partir dele que o torvelinho da escrita se pôs em movimento, para o bem e para o mal. De todo modo, ele está lá no início de fevereiro de 2010, e de maneira geral meus textos de março para trás não me agradam muito, prefiro nem relê-los, e as razões para tal seriam já assunto de outro post (são difíceis, demandam elaboração, mas guardam relação muito forte com certas transformações por que passei e que vi plasmadas na minha escrita). Fica a advertência: se alguém eventualmente for ler algum desses textos mais antigos, poderá achar que se trata, talvez, de uma outra Mariana. 

"conectar pessoas, mesmo através de oceanos e fronteiras" (ou: das vantagens de ser insignificante...)

"E se fosse possível tirar uma foto das conexões entre os mais de 500 milhões de usuários do Facebook? Paul Butler, estagiário da equipe de engenheiros de infraestrutura de dados da rede social, resolveu representar numa imagem esses laços de amizades ‘geograficamente’. ‘Queria ver como a geografia e as fronteiras políticas afetavam onde as pessoas moravam em relação aos seus amigos’, explica Butler. O resultado pode ser visto na imagem acima e reafirma, segundo o engenheiro, o impacto que o Facebook tem em ‘conectar pessoas, mesmo através de oceanos e fronteiras’." Fonte: Uol Tecnologia (aqui).

No voto popular, ele ficou em 10º. Em primeiro, já se sabe quem.
Fonte: Folha.com (aqui).

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Johnny Depp - Edward Scissorhands (Tim Burton, 1990)

Edward Mãos de Tesoura é uma fábula moderna sobre as fantasmagorias do capitalismo. Reunindo mitos da literatura fantástica e da ciência (a figura de Frankenstein), do cristianismo (o nascimento de Jesus e sua boa nova, mas também seu sacrifício), algo de Tempos Modernos de Charles Chaplin, e por fim a Bela e a Fera, o filme confirmou Johnny Depp não só como ator excelente para dar vida a personagens excêntricos, como também um ator com percurso e escolhas próprias, uma coisa talvez alimentando a outra. Trata-se de um filme tão significativo na história do cinema americano que seus 20 anos, conforme reportagem do Estadão (aqui), renderam a criação de um blog dos fãs em homenagem à criação de Tim Burton, Scissorhands20th (aqui), em que podem ser encontradas as mais diferentes recriações a partir do mito do homem com mãos de tesoura.

Neste filme, apesar de certo tom melodramático (uma concessão comercial, é certo) que pontua a entrada em cena da personagem feminina por quem Edward se apaixona (filha da revendedora Avon e narradora da história), o fato é que as mulheres jogam um papel decisivo na trama. Há dois cenários em contraste: o primeiro, a pequena "cidade" onde estão os moradores comuns, e que propositalmente é mantido com o aspecto de cenário (como a dizer, isso é uma construção cenográfica, não uma cidade), com suas cores chamativas e bizarras e seus tipos saídos de filmes B, e que funciona como um reloginho cronometrado; o outro, o castelo sombrio, gótico, pairando ao fundo, onde não parece haver dia ou noite, como se fosse um mundo mítico. A revendedora Avon, cansada de portas fechadas, vislumbra o castelo e para lá se dirige, com a mesma naturalidade de sua rotina habitual. E esse dado é importante, pois a rotina da cidade não comporta a beleza que Edward traz. A possibilidade do encontro entre a revendedora e Edward reside na inocência das duas partes, e a atuação de Johnny Depp é fundamental para que a história tenha de fato densidade. Com sua maleta de cosméticos, a bem-intencionada senhora leva-o consigo, para viver com sua família. Mas aqueles dois mundos não são comunicáveis, e por mais que a cosmética dos cremes tente disfarçar as cicatrizes, a naturalidade afetada com que a comunidade convive com aquele ser excêntrico, diferente, dá suas mostras quando Edward, apesar de competente com suas mãos de tesoura, não consegue ser assimilado pelo grupo, pela inocência em relação à engenhoca que move tudo, em especial o desejo das mulheres. Se são elas que o acolhem, são elas também que resolvem tornar sua vida impossível na comunidade. Nos bastidores, maridos que saem para trabalhar, fazendo lembrar de que matéria o mundo é movido, enquanto as mulheres, livres de maiores preocupações, entregam-se às mãos competentes de Edward na produção de cortes de cabelo artísticos. São elas, junto à pressão masculina para que Edward trabalhe de verdade e ganhe dinheiro, que acabam decidindo a sorte dele, pela rede de fofoca, intrigas e superstições que acionam. Uma combinação sórdida de capital e futilidade. 

Edward tem mãos técnicas, perfeitas para o trabalho, mas não pode amar. Quer dizer: casar-se, ter filhos, levar uma vida normal como as outras pessoas. Mas também expressar o amor em sentido largo, já que os gestos mais delicados costumam vir das mãos. Seu susto de viver é enorme. Ele expressa o amor como pode, como consegue, e sua inocência contrasta com o dado bruto da vida das pessoas. Mas essas mesmas pessoas parecem viver uma vida perfeitamente técnica, em que a beleza das esculturas criadas por Edward assombra e deslumbra. As únicas pessoas capazes de amá-lo (mãe e filha) são as que veem, para além da técnica, a beleza do que suas mãos criam. E aí é inevitável pensar na importância da postura bípede e da liberação das mãos para o surgimento e evolução do gênero Homo (já vão longe meus conhecimentos da Biologia). O que quero dizer é que nossas mãos são muito mais importantes que a correria da vida faz supor. Ter mãos técnicas, aptas ao trabalho, é tudo o que capitalismo deseja das pessoas. Mas não se pode esquecer, na engenhoca do criador de Edward, que uma das primeiras coisas de humano (em oposição à máquina) que ele resolve dar ao protótipo do que viria a ser Edward é um coração. Antes de conseguir terminá-lo, o criador morre, deixando-o órfão de alguma coisa não facilmente ponderável. Edward não quer ser mais um burguês: ele quer a arte que suas mãos podem criar e o amor que elas não podem oferecer, todo ele, por isso, concentrado nos olhos, tristes e assustados olhos.

Memórias do cárcere - Graciliano Ramos

Começo a ler Memórias do cárcere, programa para as férias, e logo nas primeiras páginas dou de cara com o dito famoso de Graciliano Ramos, tão citado:

"Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe a acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer. Não será impossível achar nas livrarias libelos terríveis contra a república novíssima, às vezes com louvores dos sustentáculos dela, indulgentes ou cegos. Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos impediu escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício." (RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 44.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 12.)

Graciliano alude ao Estado Novo, ditadura instaurada por Getúlio Vargas, e que arbitrariamente o deteve, conduzindo-o à prisão, em março de 1936: "Naquele dia do mês de março de 1936, porém, sem qualquer explicação, fui preso e remetido para o Recife, onde passei dez dias incomunicável. Depois fui metido no porão do Manaus e vim pra cá [Rio de Janeiro]. Tive dez ou doze transferências de cadeia." (SENNA, Homero. República das letras. Entrevistas com 20 grandes escritores brasileiros. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p.204.) 

Isso move Graciliano Ramos a escrever, dez anos depois, as Memórias da prisão, como declara a Homero Senna, obra que só foi publicada postumamente, com o título Memórias do cárcere. Fiquei cogitando do trecho final da fala, qual seria a diferença entre impedir de escrever e suprimir o desejo de escrever. Parece-me, inclusive, que o segundo caso é pior, pois no primeiro ainda se entrevê a possibilidade do desejo, que é a possibilidade da escrita. 

Emily Dickinson

As coisas que queríamos ter feito
Outras fizemos
E a tantas empreitadas
Nem começo se deu ―

As terras que queríamos ter visto
E nunca percorremos
A Hipótese deixada
Hipótese morrer ―

O Céu onde queríamos descanso
De tudo que sofremos
A Lógica não prova
Porém esse talvez ―


The things we thought that we should do
We other things have done
But those peculiar industries
Have never been begun ―

The Lands we thought that we should seek
When large enough to run
By Speculation ceded
To Speculation’s Son ―

The Heaven in which we hoped to pause
When Discipline was done
Untenable to Logic
But possibly the one ―

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.102-103.