Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 27 de novembro de 2010

Ocho - Vancouver Film School

U2 - Sunday Bloody Sunday

Para que servem as canções de protesto? Para lembrar que estamos vivos. Não à toa essa música é de uma banda irlandesa. Num trecho emblemático de Retrato do artista quando jovem, Stephen Dedalus diz algo assim: a Irlanda é uma porca velha que devora sua ninhada. Será o Brasil diferente?

Jimi Hendrix - All Along The Watchtower (Bob Dylan)


 "the wind began to howl"

"um ato gratuito" (Clarice Lispector)

Um trecho de Clarice Lispector que calou fundo em mim esta semana: “Então a sede estranha e profunda me apareceu. Eu precisava ― precisava com urgência ― de um ato de liberdade: do ato que é por si só. Um ato que manifestasse fora de mim o que eu secretamente era. E necessitava de um ato pelo qual eu não precisava pagar. Não digo pagar com dinheiro mas sim, de um modo mais amplo, pagar o alto preço que custa viver.” A crônica chama-se “O ato gratuito” e está em A descoberta do mundo. Os destaques ao verbo pagar são da própria. Quem vive, sabe. 

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

a quarta ponta do triângulo do tráfico de drogas


De tudo que se tem falado sobre a onda de violência que se intensificou na região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, há uma espécie de silêncio em torno de um fator bem simples, mas fundamental: o usuário de drogas. É ele a meta final do tráfico. Faz bastante tempo, numa mesa da ABRALIC, alguém falava acerca do fenômeno da neofavela, hoje rebatizada de comunidade, por que em tese estaria recebendo investimentos/recursos do Estado. Esta fala caracterizou com bastante humor, e creio que com acerto, o traficante como um empresário: todas as ações dele visavam movimentar um negócio (que é lucrativo). Se há demanda na ponta do consumo, é ilusório achar que a repressão aos atuais donos do negócio vai resolver o problema. A polícia intervém na repressão a um comércio que não vai cessar. Novos chefes já estão a postos para ocupar os lugares deixados vagos. E a apologia da ação policial, promovida pela imprensa, enaltecendo os capitães nascimentos de plantão, é nefasta, na medida em que tende a transformar o que está acontecendo numa espécie de ficção que vai mudar a realidade, quando a "realidade" das pessoas que estão sofrendo com as ações da polícia (e dos traficantes e dos milicianos) talvez seja pior que as nossas piores ficções. Abaixo, um texto de Millôr Fernandes acerca das eventuais diferenças entre um banqueiro e um assaltante, que fala por si: 

Vi o milionário saltar da limusine, caminhar tranquilamente para dobrar a esquina e penetrar na mansão onde mora. Antes de dobrar, exatamente na dobra da esquina, e nas dobras da noite, lhe saiu um trintoitão na cara acompanhado da voz surda de um sujeito que ele mal viu por trás de galhos: "Passa tudo e não chia!" Homem do mundo, acostumado aos azares e venturas da economia da vida, o rico banqueiro não se deixa assustar. Apenas aconselha: “Calma, amigo. Passo tudo e não chio, que não sou besta. E vou te dizer uma coisa, reconheço o teu valor ― você faz o que pode para conseguir o que precisa. Como me assalta deve saber quem sou, um banqueiro, um capitalista. Mas, curiosamente, não sabe quem é, pois aceita o vergonhoso epíteto de assaltante. E, no entanto, você é um capitalista igualzinho a mim. Só que, até agora, conseguiu capital apenas pra se estabelecer com um trinta e oito. Boa noite. Posso ir?”

Millôr Fernandes. Disponível em: http://www2.uol.com.br/millor/economia/018.htm

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

música para esquecer o caos - coldplay - viva la vida

mar

O mar provavelmente é o mesmo em qualquer parte do mundo, desde que alguém se disponha a ver o mar. Por que supor o mar grego mais bonito que o mar que banha o Brasil (ou vice-versa)? É sempre o mesmo mar, com sua simbologia de convite ao desconhecido, com suas possibilidades de naufrágio. 

"O importante não é a morte, é o que ela nos tira" - Millôr Fernandes

A MORTE DA TARTARUGA


O menininho foi ao quintal e voltou chorando: a tartaruga tinha morrido. A mãe foi ao quintal com ele, mexeu na tartaruga com um pau (tinha nojo daquele bicho) e constatou que a tartaruga tinha morrido mesmo. Diante da confirmação da mãe, o garoto pôs-se a chorar ainda com mais força. A mãe a princípio ficou penalizada, mas logo começou a ficar aborrecida com o choro do menino. “Cuidado, senão você acorda o seu pai”. Mas o menino não se conformava. Pegou a tartaruga no colo e pôs-se a acariciar-lhe o casco duro. A mãe disse que comprava outra, mas ele respondeu que não queria, queria aquela, viva! A mãe lhe prometeu um carrinho, um velocípede, lhe prometeu uma surra, mas o pobre menino parecia estar mesmo profundamente abalado com a morte do seu animalzinho de estimação.

Afinal, com tanto choro, o pai acordou lá dentro, e veio, estremunhado, ver de que se tratava. O menino mostrou-lhe a tartaruga morta. A mãe disse: ― “Está aí assim há meia hora, chorando que nem maluco. Não sei mais o que faço. Já lhe prometi tudo mas ele continua berrando desse jeito”. O pai examinou a situação e propôs: ― “Olha, Henriquinho. Se a tartaruga está morta não adianta mesmo você chorar. Deixa ela aí e vem cá com o pai”. O garoto depôs cuidadosamente a tartaruga junto do tanque e seguiu o pai, pela mão. O pai sentou-se na poltrona, botou o garoto no colo e disse: ― “Eu sei que você sente muito a morte da tartaruguinha. Eu também gostava muito dela. Mas nós vamos fazer pra ela um grande funeral.” (Empregou de propósito a palavra difícil). O menininho parou imediatamente de chorar. “Que é funeral?” O pai lhe explicou que era um enterro. “Olha, nós vamos à rua, compramos uma caixa bem bonita, bastante balas, bombons, doces e voltamos para casa. Depois botamos a tartaruga na caixa em cima da mesa da cozinha e rodeamos de velinhas de aniversário. Aí convidamos os meninos da vizinhança, acendemos as velinhas, cantamos o “Happy-Birth-Day-To-You” pra tartaruguinha morta e você assopra as velas. Depois pegamos a caixa, abrimos um buraco no fundo do quintal, enterramos a tartaruguinha e botamos uma pedra em cima com o nome dela e o dia em que ela morreu. Isso é que é funeral! Vamos fazer isso?” O garotinho estava com outra cara. “Vamos, papai, vamos! A tartaruguinha vai ficar contente lá no céu, não vai? Olha, eu vou apanhar ela”. Saiu correndo. Enquanto o pai se vestia, ouviu um grito no quintal. “Papai, papai, vem cá, ela está viva!” O pai correu pro quintal e constatou que era verdade. A tartaruga estava andando de novo, normalmente. “Que bom, hein?” ― disse ― “Ela está viva! Não vamos ter que fazer o funeral!” “Vamos sim, papai” ― disse o menino ansioso, pegando uma pedra bem grande ― “Eu mato ela.”

MORAL: O IMPORTANTE NÃO É A MORTE, É O QUE ELA NOS TIRA.


FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.98-99. 

trecho de conversa: "travessia"

"Ao mesmo tempo que é um momento muito dificil é também o que permite a abertura de novas vias, e começar a criar novos acessos. Você sabe disso. Já fez essa travessia algumas vezes, mas outras ainda são necessárias."

sessão nostalgia - ABBA

Dancing Queen (dailymotion)  
som, imagem, performance, atmosfera: todo um convite ao prazer de dançar 
que já foi o das discotecas: See that girl / Digging the Dancing Queen

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A guerra tem destas coisas...

"A guerra tem destas coisas, contar é que não é plausível. Mas, mente pouco, quem a verdade toda diz."

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.380.

Sudoeste - Adriana Calcanhoto / Jorge Salomão


tenho por princípios / nunca fechar portas / mas como mantê-las abertas / o tempo todo / se em certos dias o vento / quer derrubar tudo?

errata pensante

Às vezes me pego relendo coisas que escrevi lá atrás, quando estava ainda tateando essa coisa de blog, e o desejo de emendar/alterar/apagar em muitos casos é irrefreável. Isso certamente provém de mecanismos de censura inscritos de forma incisiva durante os anos de formação, de aprendizado, e acentuados com o tempo, fazendo o nível de exigência próprio à errata pensante tornar-se incompatível com o próprio fato de que mudar é a tônica. Se isso é inevitável, mudar o modo de pensar, por outro lado perceber as marcas do pensamento é uma forma de ter a dimensão do quanto se mudou. Mas justamente essa percepção por vezes torna inaceitável a configuração anterior. Isso tudo é deveras complicado. 

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Rua Haddock Lobo

Hoje passei pela Haddock Lobo, Tijuca, e lembrei-me de meu estimado objeto de estudo. É que nos artigos que Sérgio Buarque assinava nos jornais que pesquisei consta um endereço para remessa de livros, e aí que, por distração, eu pensei que se tratava de seu endereço no Rio. Não. Trata-se da Haddock Lobo de São Paulo (nº 1625). Jogo no google mapas e descubro tratar-se de uma localização privilegiada, próximo à conhecida Oscar Freire. De fato, ele morou lá, conforme informa Maria Amélia Buarque de Holanda: em 1946 muda-se para São Paulo. Reside à rua Haddock Lobo, 1625, até fins de 1952. De forma que hoje eu tive a breve ilusão de que Sérgio Buarque havia residido na Tijuca quando viveu no Rio. 

Eurythmics - Sweet Dreams


Essa música consta da trilha sonora do filme Duets, como uma espécie de riso desencantado do sonho americano.

Partido Alto - Chico Buarque

Emily Dickinson: duas traduções

This quiet Dust was Gentleman and Ladies
And Lads and Girls ―
Was laughter and ability and Sighing
And Frocks and Curls.

This Passive Place a Summer’s nimble mansion
Where Bloom and Bees
Exist an Oriental Circuit
Then cease, like these ―


Este Pó já foi Damas e Senhores
E Rapazes e Moças ―
Foi risadas e prendas e suspiros
E Vestidos e Tranças.

Nesta mansão as Flores e as Abelhas
Que no Verão voltaram
Um Ciclo Oriental, como estas,
Viveram ― e se foram ―

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.62-63.

Cemitério

Este pó foram damas, cavalheiros,
Rapazes e meninas;
Foi riso, foi espírito e suspiro,
Vestidos, tranças finas.

Este lugar foram jardins que abelhas
E flores alegraram.
Findo o verão, findava o seu destino...
E como estes, passaram.

BANDEIRA, Manuel. Alguns poemas traduzidos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007, p.78.

Torquato Neto: bilhete a Vinicius de Moraes

Bilhetinho sem maiores consequências

Uma retificação, meu bom Vinicius:
Você falou em “bares repletos de homens vazios”
e no entanto se esqueceu
de que há bares
lares
teatros, oficinas
aviões, chiqueiros
e sentinas,
cheinhos (ao contrário)
de homens cheios.
Homens cheios
(e você bem sabe)
entulhados da primeira à última geração
da imoralidade desta vida
das cotidianas encruzilhadas e decepções
da patente inconsequência disso tudo.
Você se esqueceu
Vinicius, meu bom,
dos bares que estão repletos de homens cheios da maldade das
coisas e dos fatos,
dos bares que estão cheios de homens cheios
da maldade insaciável
dos que fazem as coisas e organizam os fatos.
E você
que os conhece tão de perto
Vinicius “Felicidade” de Morais
não tinha o direito de esquecer
essa parcela imensa de homens tristes,
condenados candidatos naturais
a títulos de tão alta racionalidade
a deboches de tão falsa humanidade.

Com uma admiração “deste tamanho”.

Rio, 7/7/62.

NETO, Torquato. Torquatália {do lado de dentro}. Org. Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p.42.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Fernando Pessoa: "quietismo estético da vida"


316. Um quietismo estético da vida, pelo qual consigamos que os insultos e as humilhações, que a vida e os viventes nos infligem, não cheguem a mais que uma periferia desprezível da sensibilidade, ao recinto externo da alma consciente.

Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer.

PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006, p.302. 

O ERRO DOS INTELIGENTES

"Mas é que o erro das pessoas inteligentes é tão mais grave: elas têm os argumentos que provam."

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.391.

learning to fly - a flight of fancy on a windswept field


Em muitos sentidos, estou aprendendo a voar. E quanto mais voo (e vou), mais quero ir (e voar). Se fosse possível me traduzir numa música, esta seria minha tradução hoje. Meu desejo absurdo de voar, de aprender a voar. A sonoridade dessa música é uma alma em tensão aprendendo a voar (basta ouvir). 

Franz Kafka (narrativas do espólio)

A VERDADE SOBRE SANCHO PANÇA

Sancho Pança, que por sinal nunca se vangloriou disso, no curso dos anos conseguiu, oferecendo-lhe inúmeros romances de cavalaria e de salteadores nas horas do anoitecer e da noite, afastar de si o seu demônio ― a quem mais tarde deu o nome de D. Quixote ― de tal maneira que este, fora de controle, realizou os atos mais loucos, os quais no entanto, por falta de um objeto predeterminado ― que deveria ser precisamente Sancho Pança ―, não prejudicaram ninguém. Sancho Pança, um homem livre, acompanhou imperturbável, talvez por um certo senso de responsabilidade, D. Quixote nas suas sortidas, retirando delas um grande e proveitoso divertimento até o fim de seus dias.

KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.103.

Queda que as mulheres têm para os tolos - edição Unicamp (trecho)


A pesquisadora Ana Cláudia Suriani da Silva propôs uma versão bilíngue para o texto Queda que as mulheres têm para os tolos, uma tradução de Machado de Assis para De l’amour des femmes pour les sots, de Vicro Hénaux. Já foi postado aqui a parte inicial do texto, conforme editado por Oséias Silas Ferraz.  Segue o mesmo trecho conforme edição da Unicamp. 


ADVERTÊNCIA

Este livro é curto, e talvez devera sê-lo mais.
Desejo que ele agrade, como me sai das mãos; mas é com pesar que me vanglorio por esta obra.
Falar do amor das mulheres pelos tolos, não é arriscar ter por inimigas a maioria de um e outro sexo?
Diz-se que a matéria é rica e fecunda; eu acrescento que ela tem sido tratada por muitos. Se tenho, pois,  a pretensão de ser breve, não tenho a de ser original.
Contento-me em repetir o que se disse antes de mim; minhas páginas conscienciosas são um resumo de muitos e valiosos escritos. Propriamente falando, é uma comparação científica, e eu obteria a mais doce recompensa de meus esforços, como dizem os eruditos, se inspirasse aos leitores a idéia de aprofundar um tão importante exemplo.
Quanto à imparcialidade que presidiu a redação deste trabalho, creio que ninguém a porá em dúvida.
Exalto os tolos sem rancor, e se critico os homens de espírito, é com um desinteresse, cuja extensão facilmente se compreenderá.



QUEDA QUE AS MULHERES TÊM PARA OS TOLOS

  Il est des nouds secrets, Il est des sympathies.


I


Passa em julgado que as mulheres lêem de cadeira em matéria de fazendas, pérolas e rendas, e que, desde que adotam uma fita, deve-se crer que a essa escolha presidiram motivos plausíveis.
Partindo deste principio, entraram os filósofos a indagar se elas mantinham o mesmo cuidado na escolha de um amante, ou de um marido.
Muitos duvidaram.
Alguns emitiram como axioma, que o que determinava as mulheres, neste ponto, não era, nem a razão, nem o amor, nem mesmo o capricho; que se um homem lhes agradava, era por se ter apresentado primeiro que os outros, e que sendo este substituído por outro, não tinha esse outro senão o mérito de ter chegado antes do terceiro.
Permaneceu por muito tempo este sistema irreverente.
Hoje, graças a Deus, a verdade se descobriu: veio a saber-se que as mulheres escolhem com pleno conhecimento do que fazem. Comparam, examinam, pesam, e só se decidem por um, depois de verificar nele a preciosa qualidade que procuram.
Essa qualidade é... a toleima!


HÉNAUX, Victor. Queda que as mulheres têm para os tolos. Trad. Machado de Assis. Estabelecimento do texto Ana Cláudia Suriani da Silva. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2008, p.41-47.

domingo, 21 de novembro de 2010

Fernando Pessoa: um trecho de desassossego


Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.

PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006, p.298. 

notícia da morte de um poeta

Um vídeo do youtube dá notícia da morte de Mário Quintana, generosos quatro minutos que talvez hoje soassem datados: tanto tempo assim para falar da morte de um poeta!? Ou será que poetas incomodam menos quando morrem, e por isso sua morte ganha uma aura de dignidade? Há uma compilação de ditos e clichês, trechos de poemas imiscuídos a trechos de fala, e o mundo parece momentanemanete redimido de sua brutalidade: eles passarão, eu passarinho.

Dogville (Lars von Trier, 2007)

De Dogville já se disse tudo e mais alguma coisa: "Ao abdicar dos cenários e dos adereços, o diretor procurou valorizar o âmago de cada personagem para que o espectador, despojado do 'supérfluo' e do 'superficial', pudesse olhar apenas para o que verdadeiramente interessa em seu filme: a desumanidade que 'emana' da humanidade." (O dogmatismo de Dogville). Talvez a principal questão que o filme coloca seja que é quase impossível responder à violência sem lançar mão dela. O mundo cão é a súmula de um filme cuja última imagem é um cão, ser cuja não humanidade é a sua redenção.

David Bowie - Young Americans Live 1974

David Bowie & Philip Glass HEROES (remix)

Álvaro de Campos: "A música, sim, a música..."


A música, sim, a música…
Piano banal do outro andar…
A música em todo o caso, a música…
Aquilo que vem buscar o choro imanente
De toda criatura humana,
Aquilo que vem torturar a calma
Com o desejo duma calma melhor…
A música… Um piano lá em cima
Com alguém que o toca mal
Mas é música…

Ah, quantas infâncias tive!
Quantas boas mágoas!
A música…
Quantas mais boas mágoas!
Sempre a música…
O pobre piano tocado por quem não sabe tocar.
Mas apesar de tudo é música.

Ah, lá conseguiu uma música seguida —
Uma melodia racional —
Racional, meu Deus!
Como se alguma coisa fosse racional!
Que novas paisagens de um piano mal tocado?
A música!... A música…!

Manuel Bandeira

O lutador

Buscou no amor o bálsamo da vida,
Não encontrou senão veneno e morte.
Levantou no deserto a roca-forte
Do egoísmo, e a roca em mar foi submergida!

Depois de muita pena e muita lida,
De espantoso caçar de toda sorte,
Venceu o monstro de desmedido porte
― A ululante Quimera espavorida!

Quando morreu, línguas de sangue ardente,
Aleluias de fogo acometiam,
Tomavam todo o céu de lado a lado,

E longamente, indefinidamente,
Como um coro de ventos sacudiam
Seu grande coração transverberado!

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.198.

ou se é gato ou se é rato

Não dá para ter ilusões acerca do capitalismo: a narrativa de Kafka fala por si. Há um trecho do Eduardo Galeano em que ele fala, empregando expressão própria, que no sistema ou se é gato ou se é rato. A ilusão consiste em se supor gato, quando na verdade gato é quem está na espreita.

Franz Kafka (narrativas do espólio)

PEQUENA FÁBULA

“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.” “Você só precisa mudar de direção”, disse o gato e devorou-o.

KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.138.