Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 28 de agosto de 2010

Cláudio Manuel da Costa

Soneto XCVIII

Destes penhascos fez a natureza
O berço, em que nasci: oh! quem cuidara,
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!

Amor, que vence os tigres, por empresa
Tomou logo render-me; ele declara
Contra meu coração guerra tão rara,
Que não me foi bastante a fortaleza.

Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano:

Vós, que ostentais a condição mais dura,
Temei, penhas, temei: que Amor tirano
Onde há mais resistência, mais se apura.

Fonte: ALCIDES, Sérgio. Estes penhascos: Cláudio Manuel da Costa e as paisagens de Minas. São Paulo: Hucitec, 2003, p.14-15.

hurricane

Eu sei que ninguém aguenta mais me ouvir falar do Bob Dylan, mas o que eu posso fazer se é indescritível o prazer que sinto ao ouvi-lo?  A música que segue, "Hurricane", abre o CD Desire, e seu enredo é mais ou menos conhecido.

Indie 2010 (Belo Horizonte)


De 2 a 9 de setembro acontece em Belo Horizonte a mostra 2010 de Cinema Independente. Segue aqui um comentário pelo Cinema de Buteco. Programação completa no site oficial.

Manuel Bandeira

Cotovia

— Alô, cotovia!
Aonde voaste,
Por onde andaste,
Que tantas saudades me deixaste?

— Andei onde deu o vento.
Onde foi meu pensamento.
Em sítios, que nunca viste,
De um país que não existe . . .
Voltei, te trouxe a alegria.

— Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste.

— Líbia ardente, Cítia fria,
Europa, França, Bahia . . .

— E esqueceste Pernambuco,
Distraída?

— Voei ao Recife, no Cais
Pousei na Rua da Aurora.

— Aurora da minha vida
Que os anos não trazem mais!

— Os anos não, nem os dias,
Que isso cabe às cotovias.
Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é deste mundo:
Se enche com uma gota de água.
Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
— Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.

Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 213-214.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

adoráveis cigarras e formigas

Trabalhar com criança é sempre uma surpresa, via de regra boa. Um pouco inspirada pelo post de um amigo, resolvo relatar aqui uma situação inusitada que vivi. Alunos do 6º ano, encenação em grupo das fábulas do livro que eles leram, do Monteiro Lobato. Algumas apresentações ficaram simplesmente ótimas. Uma delas caiu no anedótico e pitoresco. Um grupo de seis garotos foi encenar a fábula "O lobo e o cordeiro". Eu observando, três de pé encenando (o lobo, o cordeiro e o narrador) e três abaixados num canto, na minha cabeça esperando a hora de entrar em cena, minha cabeça esperando-os entrar em cena. De repente, acaba tudo, rápido. Eu olho para os três e pergunto: e vocês? A gente tava fazendo o barulhinho do riacho... Na hora deu um estalo e eu falei: então troca. Uma saia justa e tanto. Mas o mais engraçado foi que um outro garoto, da turma, rebatizou a fábula: "O lobo, o cordeiro e o riacho". Captou algo da malandragem do grupo. Aliás o carioca é sempre surpreendente. Leciono para cariocas-mirins, mas cariocas, e acabo aprendendo um pouco da manha do mundo com eles. 

o seu olhar melhora o meu

O seu olhar
Arnaldo Antunes / Paulo Tatit - 1995

o seu olhar lá fora
o seu olhar no céu
o seu olhar demora
o seu olhar no meu

o seu olhar seu olhar melhora
melhora o meu

onde a brasa mora
e devora o breu
onde a chuva molha
o que se escondeu

o seu olhar seu olhar melhora
melhora o meu

o seu olhar agora
o seu olhar nasceu
o seu olhar me olha
o seu olhar é seu

o seu olhar seu olhar melhora
melhora o meu


quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Jorge Luis Borges

A rosa

A rosa
a imarcescível rosa que não canto,
a que é peso e fragrância,
a do negro jardim na alta noite,
a de qualquer jardim e qualquer tarde,
a rosa que ressurge da tênue
cinza pela arte da alquimia,
a rosa dos persas e de Ariosto,
a que sempre está só,
a que sempre é a rosa das rosas,
a jovem flor platônica,
a ardente e cega rosa que não canto,
a rosa inalcançável.

Jorge Luis Borges. Obras completas I. [vários tradutores]. São Paulo: Globo, 1998, p. 23.

Emily Dickinson

Por intuições e por sofismas
O coração fica sabendo
Sobre o Nada ― "Nada" é a força
Que renova o Mundo ―


By homely gift and hindered Words
The human heart is told
Of Nothing ― “Nothing” is the force
That renovates the World 

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p. 98-99.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Antonio Carlos Secchin

Reunião 

Aqui estamos nós
unidos pelo sangue 
e dispersos pela vida. 
Sabemos de onde viemos, 
mas não sabemos nossa saída. 
De Antônio e Catarina 
herdamos gestos, sonhos, corpos e voz. 
Muito sabemos deles, 
e pouco sabemos de nós. 
Aqui estamos todos 
― tios, sobrinhos, primos, avós ―, 
corrente entre um ontem vivo 
e um amanhã apressado, 
frente a frente 
com o futuro que nos chama, 
cara a cara 
com a chama de um passado. 
Agora atravessamos juntos 
Cachoeiro de ItapeSecchin, 
esta estrada tropical da Itália 
que desemboca em você e em mim. 
E se recompondo o que nós fomos 
este instante cintilar dentro de nós 
num sopro que a vida não apaga 
mesmo sozinhos não estaremos sós. 


Cachoeiro, 13/11/1999

SECCHIN, Antonio Carlos. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p.59-60.  

Emily Dickinson

Algumas Borboletas há
Nos Campos do Brasil ―
Voam ao meio-dia só ―
Depois ― cessa o Alvará ―

Alguns Aromas ― vêm e vão ―
À tua Escolha, uma só vez ―
Estrelas ― que à Noite entrevês ―
Estranhas ― de Manhã ―

DICKINSON, Emily. Não sou ninguém: poemas. Trad. Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p. 51.

domingo, 22 de agosto de 2010

Caio Fernando Abreu

P ê r a,  u v a  o u  m a ç ã?
Para Celso Curi

Rói as unhas no momento em que abro a porta, a bolsa comprimida contra os seios. Como sempre, penso, ao deixá-la passar, cabeça baixa, para sentar-se no mesmo lugar, segundas e quintas, dezessete horas: como sempre. Fecho a porta, caminho até a poltrona à sua frente, sento, cruzo as pernas, tendo antes o cuidado de suspender as calças para que não se formem aquelas desagradáveis bolsas nos joelhos. Espero algum tempo. Ela não diz nada. Parece olhar fixamente as minhas meias. Tiro devagar os cigarros do bolso esquerdo do paletó, apanho um com a ponta dos dedos, sem tirar o maço do bolso, e fico batendo o filtro no braço da poltrona enquanto procuro o isqueiro no bolso pequeno da calça. Antes de acendê-lo, penso mais uma vez que não deveria usar esses isqueiros plásticos descartáveis. Alguém me disse que não-são-degradáveis-e-que-eu-deveria-ter-uma-atitude-um-pouco-mais-ecológica. Não consigo lembrar quem, quando, nem onde ou por quê. Rodo o isqueiro maligno entre os dedos, depois acendo o cigarro. Então ela diz:
― Desculpe, mas acho que você está com as meias trocadas.
Geralmente um cigarro dura entre cinco e dez minutos. Como eu, para tranqüilizá-la, tento gastar o máximo de tempo possível fazendo coisas como fechar a porta, puxar as calças, pensar em isqueiros e ecologias, quase sempre ela fala somente quando termino o primeiro cigarro. Quase sempre depois que pergunto, com extremo cuidado, no que está pensando. Só então ela suspira, ergue os olhos, me olha de frente. Desta vez, porém, não suspira ao falar nas meias. Penso em dizer que acordei um pouco tarde demais, razoavelmente atrasado, e que. Mas prefiro perguntar lento:
― E isso te incomoda?
Ela contrai os ombros, de maneira que sobem até quase a altura das orelhas. Depois solta-os devagar, curvando-os para trás, convexos, como se fizesse uma massagem em si mesma:
― Não é que incomode, só que. Olha, para falar a verdade eu não me importo nem um pouco com as suas meias.
Solta a última frase rápido demais, como se estivesse querendo se ver logo livre dela, e fica à espera para ver o que digo. Mas eu não digo coisa alguma. Limito-me a dar outra tragada no cigarro, batendo a cinza no cinzeiro italiano trazido de Milão. Arrumo os óculos sobre o nariz, estes aros estilo nouvelle-vague precisam ser ajustados, sempre escorregando. Alguma cinza cai sobre minhas calças. Molho o indicador e o polegar para apanhá-la sem que se esfarele, jogo-a no cinzeiro. Ela espera. Olho fixamente para ela. Ela olha fixamente para mim, depois baixa os olhos enquanto seus ombros também tornam a subir e novamente a baixar. Quando chegam ao lugar normal, ela torna a erguer os olhos. Eu continuo esperando. Resolvo ajudá-la, pausado:
― Quer dizer então que você não se importa nem um pouco com as minhas meias?
Ela abre a boca sem falar.
― Não foi o que você disse?
Ela suspira. Estica as pernas, cruza os braços impaciente:
― Foi, foi. Mas o que eu quero mesmo dizer é que hoje não estou disposta a gastar. Gastar não, passar. Não se sinta agredido, não é isso. O que acontece é que. Eu não estou disposta a passar. Eu, eu aposto nas ameixas.
Sem entender, espero. Ela também tira um cigarro da bolsa. Remexe algum tempo, procurando fogo. Chego a estender meu isqueiro não degradável, mas ela já encontrou uma caixa de fósforos. Acende, sacode a chama no ar decidida:
― Escuta, hoje eu não estou disposta a passar aqui uma dessas suas horas de quarenta e cinco minutos discutindo as razões sub ou inconscientes de por que eu disse que você está com as meias trocadas, certo?
Eu bato o cigarro no cinzeiro.
― É que aconteceu uma coisa.
Eu descruzo as pernas.
― Uma coisa muito importante.
Eu olho o relógio suíço, passaram-se quinze minutos. Volto a encará-la, esperando que continue a falar. Não continua, mas olha fixo para mim, as faces coradas, olhar brilhante como se tivesse um pouco de febre. Espero um pouco mais. Agora que estou com as pernas descruzadas, basta estendê-las para ver a cor das meias. Chego a ficar tão curioso que faço um pequeno movimento para a frente. Talvez a bordô com friso branco, e a xadrez de preto e vermelho? A cinza do cigarro torna a cair sobre as calças, mas desta vez não é necessário molhar o indicador e o polegar para levá-la ao cinzeiro. Basta uma leve sacudidela para que caia sobre o tapete. Quando torno a olhar para ela seus olhos brilham tanto que, mais uma vez, tento ajudá-la. Calmo:
― Mas que coisa tão importante assim foi essa que te aconteceu?
Ela baixa a cabeça, murmura alguma coisa para si mesma em voz tão baixa que não consigo ouvir uma palavra.
― Como foi que você disse?
Ela apaga o cigarro, tensa:
― Quando vinha vindo para cá tropecei num caixão de defunto.
Se eu trouxesse muito lentamente uma das pernas até o lado direito da poltrona, dobrando um pouco o joelho, conseguiria ver a cor pelo menos de uma das meias. Mas ela continua:
― Quando dobrei a rua, daquele sobrado amarelo da esquina ia saindo um enterro. ― Tira outro cigarro da bolsa. ― Não, não foi assim. Antes, eu tinha comprado um quilo de ameixas. ― Por um momento fica com dois cigarros nas mãos, um aceso, outro apagado. Depois acende um no outro. ― Também não foi assim. Antes, ontem, eu dormi até quase as três horas da tarde de hoje. Então minha mãe me chamou para vir aqui.
Pára de falar, faz uma careta. Fico sem entender, até que ela apague o cigarro.
― Acendi o filtro, que merda.
Ela nunca disse um palavrão antes, penso.
― Escute.
Talvez a verde-musgo com losangos cinzentos? E no outro pé a cinza com debruns vermelhos?
― Eu vinha vindo para cá. Eu vinha vindo meio tonta, como sempre fico, assim meio tonta, meio aérea quando durmo tanto. E nem durmo, é mais uma coisa que parece assim. Que nem, sei lá. Foi numa dessas barraquinhas de frutas que eu vi. Eu vinha de cabeça baixa, umas ameixas tão vermelhas. Eu vinha pensando numa porção de coisas quando.
― Que coisas?
― Que coisas o quê?
― As que você vinha pensando.
― Ah.
Ela acende outro cigarro. Do lado certo. E fala soltando a fumaça:
― Sei lá, que eu ando. Muito triste. Uma merda, tudo isso. Mas não importa, não me interrompa agora. Deixa eu falar, por favor, deixa eu falar. Tem uma coisa dentro de mim que continua dormindo quando eu acordo, lá longe de mim. ― Traga fundo. E solta a fumaça quase sem respirar. ― Foi então que vi aquelas ameixas e achei tão bonitas e tão vermelhas que pedi um quilo e era minha última grana certo porque meus pais não me dão nada e daí eu pensei assim se comprar essas ameixas agora vou ter que voltar a pé para casa mas que importa volto a pé mesmo pode ser até que acorde um pouco e aquela coisa lá longe volte pra perto de mim e então eu vinha caminhando devagarinho as ameixas eu não conseguia parar de comer sabe já tinha comido acho que umas seis estava toda melada quando dobrei a esquina aqui da rua e ia saindo um caixão de defunto do sobrado amarelo na esquina certo acho que era um caixão cheio quer dizer com defunto dentro porque ia saindo e não entrando certo e foi bem na hora que eu dobrei não deu tempo de parar nem de desviar daí então eu tropecei no caixão e as ameixas todas caíram assim paf! na calçada e foi aí que eu reparei naquelas pessoas todas de preto e óculos escuros e lenços no nariz e uma porrada de coroas de flores devia ser um defunto muito rico certo e aquele carro fúnebre ali parado e só aí eu entendi que era um velório. Quer dizer, um enterro. O velório é antes, certo?
― É ― confirmo. ― O velório é antes.
― Ficou todo mundo parado, me olhando. Eu me abaixei e comecei a catar as ameixas na sarjeta. Eu não estava me importando que fosse um enterro e que tudo tivesse parado só por minha causa, certo? Apanhei uma por uma. Só depois que tinha guardado todas de volta no pacote é que as coisas começaram a se mexer de novo. Eu continuei vindo para cá, as pessoas continuaram carregando o caixão para o carro fúnebre. Mas primeiro ficou assim um minuto tudo parado, como uma fotografia, como quando você congela a cena no vídeo. Eu juntando as ameixas e aquelas pessoas todas ali paradas me olhando. Você está prestando atenção? Aquelas pessoas todas paradas me olhando e eu ali juntando as ameixas.
Ela pára de falar, fica olhando para mim. Depois repete:
― Me olhando, as pessoas. Eu, juntando as ameixas.
Ela apaga o cigarro. Olho o relógio, faltam quinze minutos. Acendo outro cigarro. Através da fumaça percebo que ela toca com cuidado alguma coisa dentro da bolsa, sem abri-la, por sobre o couro. Imagino que vá tirar mais um cigarro, mas ela nem chega a abrir a bolsa. Apenas toca nesse objeto no interior, distraída, com as pontas dos dedos de unhas roídas. Tão distante que preciso trazê-la de volta, firme:
― No que é que você está pensando?
Ela ri. Ela nunca riu antes, penso.
― Numa brincadeira besta que a gente tinha quando eu era mais guria. Aquela coisa de reunião dançante, cuba-libre, você sabe. ― Tira o objeto de dentro da bolsa, mas permanece com ele fechado dentro da mão. ― Faz tanto tempo que eu não bebo, tanto tempo que eu não danço. Tanto tempo, meu Deus, que eu não brinco. Será que ainda existe reunião dançante? E cuba-libre, será que existe? E aquela brincadeira, será que alguém ainda brinca? ― Olha para mim. Imagino que o objeto em suas mãos deva ser uma caixa de fósforos. ― Era meio sacana, mas uma sacanagem boba, meio juvenil, era assim. Uma pessoa tapa os olhos da gente com um lenço, depois aponta para outra pessoa e pergunta se você quer pêra, uva ou maçã. Pêra é um aperto de mão. Uva, um abraço. Maçã é um beijo na boca. ― Ri de novo. E me olha enviesada. ― Só que a gente dá um jeitinho de falar com a pessoa que pergunta e daí, quando ela aponta alguém que a gente tá a fim, dá um puxão disfarçado no lenço. Então a gente pede: maçã. ― Enquanto fala, percebo que esfrega suavemente aquele objeto contra a blusa, sobre os seios. Sorri mais ao dizer: ― Foi a primeira vez que eu beijei de língua.
Agora seus ombros estão um tanto baixos demais, quase curvos, côncavos. Os olhos brilham menos, começam a ficar meio enevoados. Acho que vai chorar, procuro com os olhos a caixa de lenços de papel. E que mais, penso em perguntar. Então ela endireita o corpo:
― Quanto tempo ainda falta?
Olho o relógio:
― Cinco minutos.
― Faltam cinco minutos, já não existem mais palavras ― ela cantarola desafinada, com uma entonação que me parece irônica. ― Tem uma música assim, não tem? Ou acabei de inventar, sei lá.
Continua a esfregar aquele objeto contra a blusa. O que será, penso sem interesse. Ela torna a olhar para as minhas meias. Talvez uma inteiramente branca, outra azul, listradinha de preto?
― Olha, antes de ir embora eu quero dizer a você que aposto nas ameixas. Foi isso que me veio na cabeça depois que saí caminhando. E quando entrei aqui no edifício, de costas para o enterro, o tempo todo, sem olhar para trás, no elevador, na sala de espera, quando entrei e sentei aqui, o tempo todo. ― Os olhos brilham mais. Nunca ela me olhou tanto tempo de frente, antes. ― Eu quero, certo? Eu preciso continuar apostando nas ameixas. Não sei se devo, também não sei se posso, se é. Permitido? Sei lá, acho que também não sei o que é dever ou poder, mas agora estou sabendo de um jeito muito claro o que é precisar, certo? E quando a gente precisa, não importa que seja proibido. Querer? ― Interrompe-se como se eu tivesse feito uma pergunta. Mas eu não disse nada. ― Querer a gente inventa.
Eu apago o cigarro. E bocejo sem querer.
― Ou não ― ela diz levantando-se. Ela nunca levantou sem que eu dissesse bem-por-hoje-é-só, antes.
Eu levanto também, sem ter planejado. Isso nunca me aconteceu antes. Ela continua esfregando o objeto contra a blusa. Só quando interrompe o gesto, a mão estendida para mim, é que percebo. Trata-se de uma ameixa. Madura, cor de vinho tinto. De sangue, talvez. Ela caminha até a mesa, coloca-a sobre a agenda ao lado do telefone.
― Isto é para você.
― Obrigado ― eu digo sem querer.
Ela arruma os cabelos com os dedos antes de sair.
― Feliz ano novo ― diz, batendo a porta. Os olhos cintilam.
Mas estamos recém em setembro, penso em dizer. Apenas penso, ela já fechou a porta atrás de si. Torno a abri-la, mas não há mais ninguém na sala de espera além da secretária lixando as unhas. Fecho a porta outra vez e há um momento em que fico parado, ouvindo o barulho do relógio em contraponto com o ar condicionado. Depois caminho até minha mesa. Toco a ameixa. A cor de sangue, de vinho, parece refletir-se na superfície polida das minhas unhas. É tão lustrosa que brilha, a casca estufada quase arrebentando pela pressão interna da polpa madura, que imagino amarela, sumarenta, estalando contra os dentes. Deixo a ameixa de lado e pego a agenda embaixo dela. Resolvo telefonar para seus pais, aconselhando que a internem novamente. Mas antes preciso ver a cor das minhas meias. Quem sabe a lilás, com pespontos azul-marinho? Os óculos tornam a escorregar para a ponta do nariz. Talvez a amarelinha de listras brancas? Não há tempo. A secretária começa a bater na porta, chegou o próximo cliente.

Caio Fernando Abreu. Morangos mofados. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 102-109.